segunda-feira, 27 de novembro de 2017

PARTINDO



Aos poucos as mãos se soltaram. Os dedos que ainda resistiam, segurando pelas pontas suadas já não davam conta. Era hora de ir, pensou. Seguir estrada, sem olhar para trás. 
As costas das mãos molhadas tentavam em vão enxugar as lágrimas que embaçavam o caminho. Lembrou do amor, do carinho, das preocupações, da amizade. Tudo jogado para debaixo do tapete, feito história em quadrinhos que termina num grande FIM.
Ainda parecia sentir o cheiro do café que nem mesmo chegou a tomar e  da rosa fresca que enfeitava a garrafa azul em cima da mesa na hora do jantar, dando um clima romântico e rústico.  Nenhum aceno, nenhuma emoção.
Por certo o jardim sentirá sua falta. Os lençóis da cama perderão seu cheiro, dando espaço a cheiros mais intensos. 
Não teve coragem de se virar e olhar. Esperou dobrar a BR para não correr risco de querer voltar e dizer que era tudo um grande engano. Mas não, não faria isso, não outra vez. Não era engano. Nada era igual e ela sabia que tinha algo errado. Cansou de ser jarro, pedra ou tapete. Cansou de compor o ambiente e por certo ele cansara do objeto. Deixou cair algumas folhas, marcando o caminho. Mas o vento forte levou, talvez junto com seu coração. Estava solta, leve, triste, vazia.



sexta-feira, 17 de novembro de 2017

MANDACARU



Verde Mandacaru, 
braços pra cima
rendem-se ao sol 
em pano azul.

Verde mandacaru,
mãos ao alto!
Pois vim do asfalto
em busca de tu.

Verde mandacaru,
forte e resistente,
força presente num povo
que não se faz descrente.

Mandacaru cultura,
exemplo de bravura,
segue acreditando,
enquanto sol brilhando.

Nuvens se formam 
num regar esperado
dá um conforto arretado
mas a chuva não vem.

E enquanto não chega
a gente peleja
mas os pontos não entrega
a seu ninguém!

(Taciana Valença)


domingo, 12 de novembro de 2017

## A ROSA QUE CARREGO ##




Hoje trago pra você a rosa
que habita em mim
e que carrego no peito,
que dorme e acorda em meu leito.

Trago para você a rosa
que colhi menina
apenas pelo vermelho
que me fascina.
Trago a rosa que recebi
na primeira menstruação,
era uma boba
com uma rosa na mão.
Trago pra você a rosa
que enfeitou a mesa
nos meus 15 anos,
entre encantos e sonhos juvenis.
Trago a rosa que decorou
o altar no meu casamento,
com todos os encantos
do momento.
Trago as rosas dos dois ramalhetes
que recebi quando amamentei meus filhos,
d'um amor indefinido e sem limites
de único brilho.
Trago também a rosa triste,
que não joguei no túmulo do meu pai
achando que assim o traria de volta.
Mas nunca mais vi seu sorriso.
Trago a rosa da indignação
pelo sofrimento da humanidade,
pelas crueldades e pela dor
da nossa incapacidade.
Mas trago enfim, a rosa
que daria a cada fiel amigo,
esses grandes abrigos,
na caminhada pela vida.
(Taciana Valença)

terça-feira, 7 de novembro de 2017

## VITRIFICADA ##



Intensamente rubra,
ardente,
sob luz emprestada do sol.

Paiol de versos,
cacos
largados nos confins.

Frios olhos,
feito de noite emprestada.
Poema sem passagem,

sem passe,
sem parceiro.
Nenhuma faísca.

Apenas murmúrio
d'm verso perdido.
Pedra poesia. Vitrificada.


domingo, 5 de novembro de 2017

QUEBRA DE REPERTÓRIO



Horas intermitentes se seguiram num dia arrastado. Tentou ler um livro, cozinhar, tirar um pouco o pó dos móveis, pois os preferia empoeirados a ter alguém limpando e bisbilhotando sua casa; tirando-lhe a privacidade. Estava se tornando um chato, era verdade, de chatices assumidas. Tirou enfim a roupa que usaria logo mais à noite. 

Perto das dezessete horas já estava devidamente arrumado. O show começava às vinte, mas era um desses dias em que não se aguentava em si. Pegou o sax, ensaiou um pouco as músicas que normalmente tocavam, acrescentando as variações do último ensaio pois, sendo o público muito fiel, era questão de respeito levar sempre algo novo. Eram, na verdade, a principal atração do local.

Perto das dezoito horas chamou o carro que sempre o levava. Gostava de pontualidade e às vezes exagerava chegando muito cedo para ir mergulhando no clima. Seu coração, feito de Blues, pedia sempre calma e tempo. O tempo jovem das coisas de última hora havia acabado para ele há muitos anos. Limpou a aliança de prata na mão direita, um falso compromisso assumido com ninguém apenas para afastar as tietes que vez por outra queriam cair em seus braços. 

Às vezes queria ser menos chamativo, mas era exatamente o tipo que as mulheres gostavam.
E não adiantava deixar a barba por fazer, usar óculos escuros escondendo os olhos cor de mel ou mesmo andar apenas de jeans, camiseta e chinelo. Tudo funcionava ao contrário.
Um episódio certa vez o deixou bastante constrangido. Mary Anne, cantora convidada pela banda, sabendo do hábito dele de chegar sempre mais cedo, chegou também antes da hora, promovendo um encontro não combinado. Pediu que tocasse para ensaiar uma música e, quando ele viu, estava dançando sensualmente. Foi muito constrangedor.

Apesar de bonita, não achou menor sentido no que fez, forçando-o a uma atitude que ele, sinceramente, não estava a fim. Ficou sem graça, continuou tocando enquanto ela quase se despia. Ao final, achando-se obrigado a fazer ou dizer alguma coisa, apenas disse: você dança muito bem. Isso custou-lhe a amizade dela, que se ressentiu indignada e fez com que ele não a convidasse mais, apesar da excelente voz. Coisas assim pareciam só acontecer com ele. Sempre discreto, nunca contou a ninguém sobre o ocorrido.

Sua timidez apenas se destacava ao lado dos homens que, por não terem o que dizer, bebiam, faziam graça e davam cantadas vazias. Por isso se tornou caseiro, fiel às boas leituras e músicas, não deixando de lado seu cuidado com o corpo, não para exibir-se, mas por achar importante cuidar da saúde e manter músculos fortes para uma velhice menos problemática.
Como se habituou a morar só, ter saúde o ajudaria.

Depois de desistir da carreira frustrada de engenheiro, a qual dedicou anos de estudo na juventude e vida adulta, resolveu seguir o coração e dedicar-se à música. O sax acompanhara uma grande decepção amorosa mas deu ao seu sopro de saxofonista um ar único e respeitado no cenário musical da cidade.

Enfim, casa lotada, o quarteto, de uma elegância ímpar, começou a apresentação pontualmente e a plateia correspondia com respeito, silenciando durante toda a apresentação. Os burburinhos ficavam para os intervalos.

Na segunda parte da apresentação (normalmente eram tres), um fato inédito na casa. Um homem se levantou esbravejando, xingando e seguindo para perto do palco. Ninguém entendeu nada. Quando caiu em si percebeu que era com ele que falava. Dizia absurdos achando, pelo jeito, que ele estava olhando para sua esposa. Como? Se mal conseguia ver os rostos de ninguém?
A confusão se formou, a banda parou e os amigos tentavam segurar o sujeito, que parecia já ter bebido além da conta. Chamaram enfim os seguranças, que o colocaram para fora tentando uma discrição inútIl.

Por sua vez, procurando ser mais discreto ainda, desceu do palco. Ao passar entre as mesas, procurando os amigos para entender o ocorrido, percebeu que duas mulheres tentavam acalmar uma outra, sentada à mesa, soluçando e visivelmente envergonhada.
Ao chegar mais perto seu coração acelerou. Reconheceria aqueles olhos nem que se passassem mil anos. A maior paixão da sua vida, a maior alegria e a maior tristeza que um homem poderia experimentar.

Trocaram olhares que por um momento pareceu uma eternidade. Sem graça, desviou o olhar e seguiu para fora do bar.

Estava tudo explicado. Só não entendia como alguém tão meiga e doce poderia estar ao lado de um homem daqueles.

Ela, tanto quanto os amigos que estavam na mesma mesa se foram. A apresentação continuou num clima sofrido.

No caminho para casa um turbilhão de sentimentos, recordações e saudades.
Por que?

Tirou a roupa, jogou gelo no copo e bebeu. Uma lágrima escorreu, sem choro.
Seu chão se abriu.

(Taciana Valença)

EU MORO NUM VERSO (TACIANA VALENÇA)