terça-feira, 26 de junho de 2018

OSSOS DO OFÍCIO




Tomou um banho demorado, ainda pensando ter enfim conseguido fazer com que ela aceitasse o convite para jantar. Foram várias investidas sem sucesso. Mas, enfim, chegara o grande dia. Nas mãos um suor frio enquanto escolhia a roupa adequada para a noite especial.

Era claro que ela, tão pura e ingênua, precisava da sua ajuda. Desta vez, não como profissional, mas como ser humano que deseja ajudar ao próximo. Mais uma vez teria que deixar a ética de lado. Paciência. Ossos do ofício. Afinal, era para isso que ele, desde muito, acreditava ter nascido: ajudar ao próximo e, especialmente, moças assim, ingênuas e desamparadas, que sofrem com as injustiças da vida e ficam indignadas com os seres ditos humanos. Como podem ser cruéis? Por isso, ele precisava mais uma vez tomar as providências.

Ao entrar no restaurante, percebeu que já estava lá. Cabelos negros e cacheados na altura dos ombros, pele alva, ar angelical, tão característico da sua delicada personalidade. Um cristal.

Ficou observando um pouco de longe antes de se aproximar. Usava um vestido longo preto de um ombro só. Tinha uma postura impecável, resultado, talvez, dos anos de ballet na infância e adolescência, como contara numa das suas sessões. Não, uma mulher daquela não merecia sofrer.

Aproximou-se. Ela sorriu ao vê-lo. O brilho em seus olhos denunciara a aprovação do visual. Estava impecável. Paletó azul-escuro, camisa branca e gravata vermelha. Beijou-a delicadamente no rosto enquanto o garçom afastava a cadeira para que pudesse sentar. 

Ao lado dele suas angústias, desesperanças e sofrimentos desapareciam. Era seguro, determinado, bonito, sincero, perfeito. Suas palavras a acalmavam, mostravam o quanto a vida poderia ser bela. Sentia profundamente que desejava ajudar. Porém, talvez estivesse se apaixonado durante o tratamento. Mas isso ele não sabia, ainda.

A noite não poderia ser mais agradável. A conversa seguiu mais leve, numa informalidade que ambos não conheciam. Estavam tão felizes que nem perceberam o tempo passar.
O restaurante já havia fechado e eram os únicos ainda no ambiente. Os garçons, solícitos e atenciosos, não os deixaram perceber o adiantado das horas.

Ficariam ali por muito mais tempo, pois a conversa parecia não ter fim. Ela lembrou que teria atendimento no dia seguinte e no primeiro horário da manhã. Sabia disso porque era ela que estava marcada.

No carro, ainda sorrindo e muito felizes com o encontro, uma surpresa: tirou uma taça do porta-luvas e ofereceu-lhe uma dose de uma garrafinha de vinho que adorava e sempre trazia quando viajava. Não beberia por estar dirigindo. Então beijou-a nos lábios, com carinho.

Ligou o carro e pegou a estrada de volta. Um suave blues acompanhava o retorno. Olhou para ela então. Sua cabeça relaxada pendeu para o lado da porta. Observou. Parecia um anjo dormindo em sono profundo.

Foi então que parou o carro. Abriu sua porta e carregou-a nos braços até o local onde, rodeada de flores do campo, dormiria enfim o sono dos anjos. Deitou-a, cobrindo-a de terra. Com os olhos cheios de lágrimas disse as últimas palavras:

- Fica em paz, meu amor, este mundo não a merece. Estou feliz em poder ajudar.

(Taciana Valença)



TELA: O BEIJO, de Klimt, "poeta da Arte Nova e do Simbolismo.
Concluída entre 1907 e 1908, "o Beijo" oferece mais do que uma interpretação. Poderá representar a felicidade, bem como a união erótica, assim como a identidade dos dois sexos, numa só construção, feita pelos dois. Ainda assim, a forma "em auréola" que é feita pelas costas masculinas e que envolve o casal parece simbolizar a masculinidade protetora do amor de ambos. A mulher, ajoelhada, encontra-se numa posição passiva. No entanto, apenas a face da mulher é mostrada, o que a enfatiza face ao homem.
O arbusto constitui um vestígio do realismo. E Klimt gostava de flores, bem como do enlace humano. Mas notam-se características do Simbolismo, através das fitas douradas nos pés da mulher que serviriam para representar o cabelo das "femmes fatales", com o qual seduziriam as suas vítimas.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

## CONVERSAS AO PÉ DO RAPÉ ##


Assim que chegava ia logo para o seu quarto. Cabelos brancos, enormes, estavam sempre presos num coque. Olhava para a porta, a visão já muito ruinzinha e perguntava: Taci? 
Ó minha filha! Dava um sorriso gostoso, desses que só bisavó sabe dá. Estava muitas vezes com seu radinho de pilha encostado ao ouvido, concentrada nas novelas. Mas quando eu chegava e sentava na cama ela começava a contar suas histórias.
Algumas eu já sabia de cor, mas adorava ouvir novamente. Ela parecia reviver. E me diga, tem nada mais gostoso do que deixar que o outro reviva sua vida, seus momentos mais marcantes?
Ah, eu deixava, tantas vezes quantas ela repetisse.A impressão que me dava é que ela tinha sido muito feliz, tal o gosto com que contava os fatos. Pelo que dizia, meu bisavô era um verdadeiro cavalheiro. Lembro bem quando contava dos passeios e um dia me disse que ele não comprava as entradas para o cinema, comprava o “permanente”. Não sei exatamente o que era, mas era algo como comprar as entradas para um mês todo. Bem, devia ser. Ela explicou mas não lembro.
Ela tinha uma latinha de rapé, que chamava de torrado e vivia colocando nas narinas. O cheiro era forte e sempre fora um objeto curioso para mim. Mas sabe que eu nunca tive a ousadia de tocar? Às vezes dava vontade de pedir para colocar em mim só para saber que efeito teria, já que usava todos os dias e parecia ser realmente viciada naquilo, mas eu sempre tive muito respeito pelos vícios peculiares de cada um e também achava que não iria gostar.
Mas a latinha de rapé fazia parte do contexto, do cenário e da admiração que eu tinha por aquela vó de cabelos tão branquinhos e sorriso aberto. Sempre que podia sentava na cama e ficava viajando nas histórias.
Ela ficou doente (nossa, eu nunca tinha visto ela ir a um médico!) e como tinha dificuldades para andar por conta de uma artrose, levaram o médico até lá. Depois da consulta, olhando-o da cabeça aos pés e já que não tinha nada a perder mesmo, falou: sabe que você é muito bonitinho?
Ela era assim, bem humorada e conversadeira. Quando chegava e perguntava como estava ela dizia: tirando a dor nas costas, a vista ruim, a dor nos ossos, e etc, etc, etc, está tudo bem. E ria-se. O riso era sempre um ponto final. Uma vez ela disse que quando passamos a rir das nossas próprias mazelas é sinal de que estamos evoluindo.
Já mais velhinha suas conversas perderam um pouco as estribeiras e um dia, querendo que ela recordasse as que já havia me contado, perguntei: e meu avô vó? Conta mais sobre ele.
E o resumo da ópera foi decepcionante, algo que me fez desconstruir todo o personagem perfeito que criei durante anos:
Era um galanteador. Não valia merrrrrrrrda! (e caprichou tanto no “r” que não esqueço até hoje!) E, naturalmente, caiu na gargalhada.
(Taciana Valença)


sexta-feira, 15 de junho de 2018

Na porta da vida



Fez morada debaixo do guarda-chuvas,
ficaria ali por horas no silêncio de si mesmo.
Alma se aquece em qualquer lugar,
sendo mistério a mistura desta quentura.

Por enquanto estava imune.
Observador das pessoas, detalhes da vida.
E quão vazias pareciam no vai e vem.
Pasto, chiqueiro, galinheiro, tudo igual.
Por qual das respostas clamava naquele dia?
O cheiro d'uma fornada próxima invadia suas narinas.
Um taxista parou, aleatoriamente, num achismo mecânico.
Dispensou com preguiçoso aceno.
Difícil aquietar-se no mundo,
mesmo em peregrinação solitária.
A vida em si solitária, enorme cela.
Tempos árduos de apreensão.
No fétido canal o mundo se esvai...
Coração cravado no peito em dor de leito.
Romantismo a rondar vida tão seca.
Bate o murmúrio das horas. E agora?
(Taciana Valença)

Vitória Régia



De tão Régia 
as tardes regia. 
Em plagas d'água varando a noite,
ao comando raiar do dia.

Imponente sobre verde espelho,
leito sóbrio de poesias,
Régia, regeu, regia,
dias de alegria.
Boiando em esplendor,
reina em território dominado
que nem Flor de Liz
tendo força em seu legado.
Regeu como regente,
regendo se perdeu,
em turvas águas sagradas,
sementes dos braços teus.
(Taciana Valença)
Foto: Taciana Valença (Praça de casa Forte-Recife)

domingo, 10 de junho de 2018

Última celebração


Pelas frinchas entre os sepulcros
jazem almas arrependidas,
tontas, tagarelando asneiras
perdidas sobre vidas banidas.

Moldagens erradas
n'arquitetura das memórias.
Para onde foram as glórias?
Donde estão os pergaminhos?
Jaz o corpo sem domicílio
sob argamassa de ilusão.
Impropérios dirão aos Deuses
sobre seus próprios engodos.
Dissimulados não enganam a todos.
As cortinas se fecham
e não há fio de sangue nos costados,
mas um mundo a ser julgado.
E se o juiz errou por um triz
ou corromperam nossas astúcias?
Por que agora mastigar a vida,
das pálpebras fechadas aos fios de minúcias?
Tempo de vento cruel,
d'um alívio dorido e de sorte.
Mundo que se derrama em vida,
dias em sentença de morte.
(Taciana Valença)