sábado, 27 de julho de 2019

## NUM CANTO DA VIDA ##


Tenho andado por ruas estreitas, observando o arder nos confessionários das esquinas, numa insubordinação inconsciente, a cumprimentar corpos sem vida, que pedem bênçãos antes de morrer.
Sento-me no batente de uma calçada qualquer, abraçando o mundo no colo, inundada pelo sentimento de culpa de não dar conta das contas do terço e dos conventos que já não convencem.
Olho o ir e vir das pessoas na estação, olhos sem vida, pressa no coração. Até mesmo os que seguem em turismo parecem serem felizes por obrigação. 

Sinto não ver um riso largo, um afago.

Uma risada espontânea chama minha atenção, como oposição aos meus pensamentos.
Sim, ainda há gente que sente sem fazer de conta. 

Esqueço as contas do terço e desabo a rir dessa minha loucura, querer ser sã num mundo sem cura.
Escapar dos atentados, estar atento. Cuidar dos ferimentos do corpo e dos outros.
Mas que romântica era aquela ruela, chão de pedras, varandas com flores...
Os ponteiros apontam o entardecer enquanto a porta aberta de um casarão me conta um segredo.
Usa um pseudônimo para me dar o recado. Por certo comprometedor.
Rasgo dentro de mim, dou de ombros.

Muitas vezes não saber é esperteza. Estalo a língua num forçar de desdém.
Uma senhora vestida quase em trapos me pede um trocado. Sem querer ela me invade e me culpa.
A pior arma que alguém pode ter nas mãos é a arma da miséria.
Olho a igreja no final da rua. Um tiro no peito.

Vejo o mundo punido sem julgamento e a mediocridade dando as ordens.
A senhora me olhava nos olhos.

Bomba-relógio. Eu estava tão prestes a explodir ali.

Em meus impulsos, tão meus, convidei-a para sentar, numa tentativa de abrandar o sofrimento com palavras, já que não tinha voz para dar ordens ao mundo.
Ela apenas chorou. Balbuciamos orações ao Universo.

Peguei suas mãos fracas e envelhecidas e acolhi entre as minhas. Foi quando bebeu um pouco de mim e contou sua história. 

Uma celebração particular, um proteger silente.
Choramos juntas pelos nossos limites.

Um padre passa por nós, seguindo para a igreja.

Um breve aceno. Nenhuma palavra. Como se normal fosse tal cena.
Não o condeno por atravessar almas como se atravessa ruas.
A vida é assim. Quem sabe tudo seja acaso e não haja nada mais a entender?
Às vezes é disso que tento me convencer.

Taciana Valença

## POEMA PARA ELAS ##





Palavras repetidas,
sob mesma emoção, 
acabam por seguirem em vão,
no vão do nada onde nada preenche.
Entre o frio e o quente
mudam-se nomes e datas, apenas,
Helenas de Atenas, do Chico e Boal.
Sonhos, cavalos alados,
prazeres, sol e luar.
Dia, noite, colo, gozo.
Pouco criativo, talvez,
mas a bola da vez.
Calor, paixão, canção,
gemidos e sussurros.
"Arde sem se ver", diria Camões.
"Fui teu, foste minha". O que mais, Neruda?
"Amar não é aceitar tudo", Vladimir,
nem todo amor é vagabundo,
há os que querem viver 
em cada vão momento, Vinícius,
e os que "ardem sem se ver",
ardendo nas chamas de Camões.
Morre o poema ficando sujo.
Bela,bela, mais que bela,
mas como era o nome dela?
"Perdeu-se na carne fria,
perdeu-se na confusão
de tanta noite e tanto dia.
mas como era o nome dela, Gullar?
Ah, não sei não!


(Taciana Valença)

## POEMA ASSIM, DO NADA ##



Poetas confabulam na madrugada,
versos se cruzam pelas esquinas da vida,
a cama espera o sono dos injustos consigo mesmos,
num olhar distante, num caminhar a esmo.

Escolhem o silêncio das revelações 
ou mesmo o barulho delas, ensurdecedores.
Um bem-te-vi apressado, também acordado.
Não está cedo, pássaro aluado?

Mas o que é cedo diante do tempo ?
O que é o tempo diante do Universo,
que não se define e nem se revela?
A madrugada esfria e o dia em breve apontará.

Ainda nem estou pronta para a porta, 
nem mesmo preciso sair.
O bem-te-vi se calou, parecendo me ouvir,
ainda é muito cedo, bem-te-vi...

Olho a Lua, recém coberta pelo Sol,
num eclipse, lampejo astral erótico,
onde uma estrela cobre um astro,
que antes apenas a iluminava ao longe...

Acolheu-se entre a Terra e o Sol,
num aconchego tão distante de mim,
tão distante de nós...
São os nós da vida que ninguém desata.

Ando a rondar por entre os becos,
procurando coisas escondidas
entre latas e camundongos. Aventureiros?
Sim, sim... sem medo dos perigos.

E não é que cortei o poema ao meio?
Nesse andar tão distraído de rasuras,
aproveitei as fissuras e restaurei
parte de algum poema vencido.

(Taciana Valença)

## MEIO LEITO ##


Lá fora chove,
aqui dentro respinga.
Aleatório frêmito resvala,
causando calafrios...

É tarde, as horas ardem
enquanto percebo agora,
esporádicas gotas 
ecoarem sobre as folhas.

Um quase nada, um indo embora.
E ritmado segue apenas meu coração,
bombeando os labirintos de mim,
abastecendo células, segurando a vida.

Dizem que do tamanho do punho. 
Ele pulsa, e assim, mesmo paradinha,
ele bate, setenta vezes por minuto,
e eu dependo da sua auto-suficiência.

Máquina completa que me sustenta,
melhor que qualquer uma
pelo homem projetada,
sem a qual não sou nada.

É, vim da chuva ao coração,
molhei alma e mãos,
tudo aqui onde nasce meu rio,
e escorrem segredos: meu leito.

(Taciana Valença)

## POR UMA NOVA TELA ##



Não hão de calar a voz,
cortar braços, olhos e mãos.
Nadarei contra maré lixo tóxico,
sobre pedras serei sola de borracha.
Insano algoz de incertas flechas.

Covarde!
Fogo sobre povo que ingênuo arde.
Maldade em homeopáticas doses;
tesoura em asas de babilardes.
Não, não hão de congelar meu sangue,
nem destruir nossos propósitos,
minha argúcia inda resiste sob o peso,
apesar dos dedos, apesar da gangue.

Liberdade há de acordar triunfante, 
força da maré a ralé carregará,
dias inglórios vencidos serão,
tintas em nova tela surgirão.

(Taciana Valença)

segunda-feira, 15 de julho de 2019

## Essa é para você, seu gordo! ##






Quando abri o janelão você estava lá, com aqueles olhos verdes e seu ar de superioridade. Você sabe, esse seu andar acima do meu, esse seu olhar para baixo, como ser supremo e superior , essa sua calma e equilíbrio, a andar na beirada da janela, isso me irrita às vezes, quando eu, apressadamente, estou a molhar as plantas e você fixa seus olhos em mim, como querendo perscrutar, ou quem sabe me insultar com essa calma inabalável de gato gordo.
Sim, você é gordo! Pronto falei. Sim, isso é bullying. E o que faz comigo também não é? Esse insulto silencioso de beira de janela, a me olhar de cima para baixo como se eu fosse um ser inferior.
Se tem sentidos apurados saiba que também tenho e sei o que está pensando de mim quando olha durante muito tempo e me dispensa com apenas um miado. Miado de gato gordo e curioso.
Pois hoje eu vou falar de você, dizer a todo o mundo o quanto é curioso e vadio, olhando as janelas dos apartamentos em dias quentes ou frios, esperando uma a tigela de ração com água para depois se deitar, preguiçosamente no sofá da sala dos seus donos, que se deixam dominar por essa sua empáfia!
Essa autonomia e independência, essa elegância de quem não sente carência. Parece que me considera de igual para igual. É muita ousadia para um simples felino. Você é muito é vaidoso, a se lamber o tempo todo e achar que pode tudo. Mas eu sei das suas fraquezas, dos seus medos. Você sobe, sobe, sobe bem alto e depois não sabe descer, tem medo!
É, também sei dos seus segredos, gato gordo!
Vou sair, e não me olhe da janela, não hoje, porque hoje eu não tô boa não!
(Taciana Valença)

terça-feira, 9 de julho de 2019

## TU ##

Em meus dias estais tu
a coser felicidade em fina linha,
a me fazer inteira
em nossos piores desertos.


Mais vale o riso, particular paraíso, 
pois somos em nós tão precisos.
Tua voz, meu sossego,
mesmo quando desassossegada.


Morro tragada pelos teus olhos,
desapareço entre teus dedos,
deixando-me engolir,
como se engole verso inteiro.


Guardo em meu ventre 
semente do teu gozo,
o mais íntimo da tua essência,
e assim em mim te coso.


Taciana Valença

VERSOS VENCIDOS


O poema perdeu a voz
o jeito
o respeito,
o brio.
Apunhalou o peito,
deixando grande vazio.

(Taciana Valença)

domingo, 7 de julho de 2019

## AQUILO ##






Aquilo na verdade não estava ali. Nunca esteve. Foi apenas criado por um desejo, uma vontade de que estivesse. Uma criação. Armadilha da mente, que mente, inventa, alimenta. Alimenta crias que crescem sem raízes.

E quando passamos o rodo e o pano, o chão aparece limpo, sem sinal algum de que ali, algum dia, algo fora realmente plantado, muito menos que tenha criado raízes. A ilusão é perigosa porque parece ser algo alimentado no ventre. Cresce. Sim, cresce. E existe, mesmo que não exista. Torna assim o corpo cúmplice e dependente de um acidente inventado pela mente, que mente!

O perigo da cria é o vício, o altar onde se coloca um nada, deixando assim o nada dominar. Isso é tudo que não se deve, pois crise de abstinência do nada é fado que adentra noites e madrugadas.

Aquilo é o inconsciente, transformando nada em convicção plena. E a pena é deixar que aquilo tome seu peito, num aconchego de manjedoura.

O jeito é deixar aquilo em algum canto. Trancar em um quarto escuro, deixar morrer à míngua. Libertar-se, enfim, do que se inventou. Pois aquilo é feito massa de modelar jogada na frente da mente, que deseja dar a forma que lhe convém. E se alguém não lhe tirar das mãos, assim como se faz com uma criança, ela mergulha na ânsia da cria que alivia os seus dias. Faz, alimenta e investe na cria, fazendo dela sua aliada, da vida e da guerra silenciosa travada com os dias.

Pois aquilo também é isso, que invento em meu caderno, cheio de céus e infernos. Túmulos e montanhas com vista para o mar, na dolorosa fragilidade de um existir que teima em nos enganar..

Coragem e fraqueza servidas à mesa, em colheres grandes e de sobremesa, dispostas a alimentarem o apetite da solidão, visto que tudo o mais é pura ilusão.

Pois o chão é batido, no braço e no pulso, a cada minuto, a cada soluço, no grande sertão do coração.

E nada causa tanta dor quanto perder aquilo que se criou.

(Taciana Valença)

sexta-feira, 5 de julho de 2019

SUMIÇO DO OVO


Um tanto tonta, coloquei os pés no chão, como de costume. Alonguei os braços para cima, para os lados, toquei na ponta dos pés (hábito diário). Pescoço para frente e para trás. Pronto! A primeira ginástica é esse preguiçoso, mas, habitual alongamento.

Sim, dormi demais, e no dia em que me dou a esse direito acho que estou devendo algo a alguém e enquanto penso, aflita e atrasada (estado perene em meu ser), percebo de repente que esse alguém sou eu mesma e que, por acaso, não estou me cobrando nada.

Com a sandália nos pés, ainda um pouco sonolenta, fui ao banheiro e à cozinha. Sentir o cheiro do café sempre me deixa mais esperta, por isso o faço antes do banho. Mas, excepcionalmente naquele dia, como estava atrasada, e não me recordo bem para quê, como disse, talvez porque estar atrasada seja meu estado permanente, resolvi tomar café logo, pois, além disso, acordei com fome.

Resolvi pelo básico: café com minha crepioca de queijo com banana. Simples e rápida. Coloquei a massa na tigela e peguei o ovo para adicionar à mistura. Foi quando o telefone tocou. É, parece que se o telefone não tocar o dia não começou. A contragosto fui atender. Sabe esses números que ligam quatrocentas vezes ao dia para você? Pois foi um deles. Dizem que são robôs e que ficam tentando até que algum desavisado caia na cilada. Sei não, mas não atendo.

Voltei. Peguei novamente o ovo. Por incrível que pareça o telefone tocou. Nossa! Somos mesmo reféns da tecnologia. Como havia deixado na mesa do corredor, saí, desta vez com o ovo que seria quebrado, na mão, e fui atender. Era minha irmã. Falamos e desliguei. Imediatamente entrou uma mensagem. Voltei, li, respondi. Outra: voltei, li, apaguei. Quer saber? Desliguei. Ninguém merece tamanho desassossego (nunca tinha percebido que essa palavra tinha tantoS eSSeS!).

Voltei para minha receita. Cadê o ovo???? Certeza de que saí com ele na mão! Voltei. Fiz o percurso: corredor, banheiro. Ah! Lembrei que quando desliguei o telefone coloquei água em alguns jarros. Essas coisas que a gente fica fazendo no meio do caminho. Olhei perto das plantas: nada. Não que não tivesse mais ovos, mas eu tinha que achar aquele, pois certamente não havia colocado ele de volta na galinha (falo da galinha artesanal, onde coloco os ovos). Olha que eu já perdi muitas coisas, mas nunca perdi um ovo.

E antes que me digam que essa história de ovo e galinha é coisa de Clarice Lispector eu vos digo: o ovo era meu e não da Clarice. O ovo dela era um ovo qualquer, aleatório. Clarice não queria quebrá-lo. Eu queria quebrá-lo e comê-lo no café da manhã. Ela viu o ovo, apenas, e percebeu que não podia estar vendo porque "ver o ovo nunca se mantém no presente". Ri quando lembrei da frase do conto O Ovo e a Galinha:  " No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança  de um ovo". Pois era exatamente isso: meu ovo era agora apenas uma lembrança. Como não lembrar de Clarice? E não tive como me conter ao, inevitavelmente comparar o conto ao fato real.  "Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo".  É brincadeira né? Pensei: Ela veio tomar café comigo e sumiu com o ovo, provocando essa lembrança. E quanto mais lembrava do conto, mais vontade de rir me dava. De repente estavam eu, Clarice e o não ovo, além da não galinha.
E se "a galinha é um grande sono", o ovo, definitivamente havia me tirado a sonolência com a qual cheguei à cozinha.

"– Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome." 

Sim, Clarice, eu estava com fome, sim. E se o ovo é a alma da galinha eu ia comer a alma da galinha  sem o menor constrangimento porque, até então, eu não tinha, nem de longe, lembrado do seu conto, nem do seu ovo, muito menos da sua galinha, que tem a posse do ovo e que se depender de mim eu diria apenas que sumiu "o ovo", não me importando que o mundo ficasse nu. Eu precisava da gema, da clara, do ovo todo e se ele me via eu não mais o via e isso me perturbava porque em algum momento ele iria apodrecer onde estivesse. Iria ficar preto e não mais branco e eu iria chamá-lo de preto e de podre, vivendo assim pra sempre. Vou chamar preto de preto, e a humanidade, assim, se perpetuará.

Perdi o grande sacrifício da galinha, Clarice, e o seu sonho inatingível. E se você não entendeu sua viagem, eu certamente entendi a minha. Não sou galinha, mas estou permanentemente sobrevivendo. Se a galinha não sabia que tinha um ovo, eu sabia, ele estava em minhas mãos até seu misterioso sumiço. Sim, eu ira comer (e comi) o mal desconhecido dela e não me deu congestão. Na verdade estou eternamente gestando a vida que quando enfim nascer, morrerá.

Pensei; -  a partir de certa idade você começa a perder as coisas com mais frequência: chaves, óculos e celulares são os mais habituais, mas um ovo???? Tenha paciência. Acho mesmo é que quando a idade vai chegando a gente nem pode mais esconder nada de ninguém, correndo o risco  real de escondermos de nós mesmos. Mas, voltando ao ovo: uma hora ele aparece, só não sei onde. Fui fazer, enfim, meu café da manhã. Dessa vez com telefone desligado e agarrada a um ovo como se ele, por conta própria, fosse sair correndo. Talvez ele tenha cumprido seu papel de ovo: me levar ao insólito conto de Clarice. 

Até agora ele não apareceu. Caso mesmo de desaparecimento. O que me leva a refletir sobre a frase: 
"Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez."

Instintivamente abri a janela e para minha surpresa: 

não, o ovo não estava lá. 

Taciana Valença