terça-feira, 25 de dezembro de 2018

PESCADOR



E voltou o pescador.
Qual miragem n'alvorada.
Barbas espuma, cabelos brumas...
Sol refletindo na seca garrafa de pinga.

Era sim, o mesmo barco,
rastreado pelo vento,
velho conhecido casco
de fechadas noites e de luas.

Era ele, lembro bem.
Peixe pequeno em ponta d'anzol
a buscar robalos entre cardumes.
Donde veio, por onde andou?

Talhado corpo em madeira
que agora desancorou.
Braços fortes, saudosas cordas
que do tempo escapou.

(Taciana Valença)


quarta-feira, 12 de setembro de 2018

DIAS DE CRAVO E DE CÉU



Já tive dias de cravo,
também de rosas em botão,
dias de amores bravos,
lentas horas, velha canção.

Sol ao acaso, nascido assim.
Foi quando o dia me pediu perdão,
tendo rezado de todo jeito, prece no peito,
nome rasgado afogado em Jasmim.

Nada que não passe
numas boas braçadas em mar aberto,
certo, certo, não certo...
Em paz, peito aberto.

Debruçada sobre o horizonte
penso nos montes, sem vista para ao mar.
Faço avião de papel, empino,
sigo a linha do céu.

(Taciana Valença)

domingo, 5 de agosto de 2018

## ESTRANHA ##

Estranha, apenas uma estranha,
quem sabe mutante,
mudando de pele, de olhar,
de semblante....
Estranhamente estranha,
algo novo nas entranhas,
expurgando o que não cabe,
renovando verdades,
desfazendo-se da velha pele,
viciada, desgastada.
Mutante, saindo da casca,
do nevoeiro, do cativeiro...

(Taciana Valença)

sexta-feira, 27 de julho de 2018

## SUBMUNDO MADRUGADA ##





Nas esquinas da madrugada almas confabulam, contrabandeando sentimentos.
Charlatães, prostitutas, amas de leite,
comércio ilegal, vícios, deleites.

Penadas almas em fugas de pestes,
atravessam em faixas de pedestres.
Lixo escuro debaixo do tapete, alguém dá a luz
em grave grito de delito a se esconder da ronda.
Há um paletó sobre o cadáver,
médico é extinto em dolorosos instantes.
Atrás das grades o preso grita
enquanto outros se agitam.
Crime e testemunha.
Uma arma reluz esquecida
na encruzilhada bandida.
Bêbado confessa crime de execução,
tiro sem bandido, mala sem provas.
Alguém suplica em reza redonda,
uma absolvição que seja, menos provação.
Saia sobre pernas cabeludas
treme na delegacia, vida em sangria.
Batina descansa na cama,
não há sermão nem mesmo pijama.
Poeta declama solidão para as paredes
entre fumaça de fio verde.
Ratos saem dos boeiros
escorregando na lama,
moça insone vive seu drama.
Prostituta em botas altas suspende o short,
rapazes de carro gritam em deboche.
Menino suplica entre tapas
reagindo ao camburão.
Madrugada dos sem perdão. 

(Taciana Valença)


Bem-vinda, Lisboa.


Olhava o céu azul enquanto um turbilhão de coisas passava pela sua cabeça. A vida parecia ter passado muito rápido, como as nuvens agora passavam na pequena janela do avião. Talvez um sopro! De repente pensou que pudesse ter feito tudo antes, mas antes de quê, se tanto já fizera? Lembrou da juventude quando morou na Holanda, experiência tão única, das viagens, da família, do apoio que sempre teve, da perda do pai, tão de repente, quebrando um alicerce que agora aprendera a se moldar e da coragem de, já adulta, mudar de corpo. Um up grade para enfrentar um novo mundo.
Como a se desculpar ou mesmo perdoar, mudara de opinião rapidamente, confortando a si mesma: as coisas só acontecem no momento certo. E de repente o rosto se descontraiu. Estava muito bem. Receosa, claro, mas bem.
Apesar de um casamento desfeito, que pensando bem, pudesse ter sido até um erro, um desejo momentâneo do experimentar, mas quem não os tem? Quem sabe na verdade o que fazer e quais os momentos certos? Ninguém. A vida é um laboratório e só conseguimos os resultados, sejam eles positivos ou negativos, quando misturamos as poções. Se der certo, ótimo, se explodir ou desintegrar, paciência. Sigamos.
Lá de cima avistou a cidade. Lisboa, tão dentro do seu sangue. Lembrou das aventuras quando esteve por lá com toda a família. Uma lágrima de saudade rolou livre e espontânea pela face. Depois disto, já adulta, estivera por lá a passeio. Mas agora tudo era diferente. Estava em busca de uma vida nova, em um novo lugar e isso dava frio na barriga. Apesar da dupla nacionalidade sabia que os pés demorariam a sentirem a terra firme.
A presença da amiga que fora estudar e da filha dela davam um certo conforto. Mas sabia que agora seria ela por ela. Instalada em um apartamento que dividiria com a amiga, começou então a sua nova vida.
Resolveu fazer um curso, através do qual poderia conseguir um trabalho melhor, visto que, mesmo sendo jornalista e ter habilidades adquiridas pelos muitos anos de trabalho, não seria suficiente para ocupar um bom cargo num país que, apesar dos laços sanguíneos, não era o seu.
As dificuldades começaram nos primeiros meses. Achar um trabalho não estava fácil, realmente. Além disso, apaixonara-se por um homem cuja relação pareceu complicada. E até que percebesse que tudo poderia não passar de uma carência, sofreu um pouco. Decidiu: voltar ao objetivo. Apaixonar-se? Agora não!
Determinada, continuou seguindo seus instintos. Deixou o curso e partiu para tentar novo trabalho. Apesar das dificuldades enfrentadas, parecia estar mais atraente. Olhares e convites confirmavam isso, para seu estranhamento. Talvez todas as mudanças tivessem culminado numa nova e interessante mulher. E isso não passava despercebido pelo crivo masculino. Em toda sua vida não havia se sentido assim, tão desejada. Isso não era nada mal.
Estudara as opções e as investidas como quem lê um cardápio! Degustar? Talvez, quem sabe? Seguiria seus instintos. Talvez hoje fosse filé, amanhã um bom peixe. Quem sabe um frango grelhado? Sim, agora, senhora de si, estava focada no seu propósito primeiro: adaptar-se ao país e se estabilizar. O cardápio? Sim, sim, o cardápio vai sendo experimentado, afinal, terá tempo para isso.
(Taciana Valença)

sábado, 14 de julho de 2018

ASSIM O CONHECI



Era um desses fins de semana em que, para descansar da lida diária, viajamos para uma cidadezinha perto.  Íamos ouvindo música, curtindo a estrada (que adoro), quando o telefone tocou. Não conhecia o número e até pensei em não atender, afinal estava saindo para descansar, mas, como não estava dirigindo, resolvi atender.

- Alô?

- Taciana?

- Sim, quem fala?

Foi então que o homem começou a cantar:

- Sempre ouvi dizer, que numa mulher, não se bate nem com uma flor, loura ou morena, não importa a cor, não se bate nem com uma flor…

Fiquei sem entender e perguntei novamente quem era. Foi então que respondeu:  não sabe? 

Bem, minha tolerância para essas coisas de “adivinha quem é” não funciona. Desliguei o fone e disse: era só o que faltava, tem um homem na linha querendo que adivinhe quem está falando e ainda cantando música. 

O telefone tocou novamente.

- Taciana? Agora você vai saber: “você diz que ela é bela, ela é bela sim senhor, porém poderia ser mais bela, se ela tivesse meu amor, meu amor…”

Desliguei! Cara maluco! No carro disseram: deve ser um admiradordando uma cantada. Pensei: literalmente uma cantada! Aliás, duas já!

Mais uma vez o telefone. Desta vez não atendi. Como já estávamos chegando no hotel eu pensei: vou deixar o fone desligado, afinal, vim descansar. E assim o fiz, durante todo o fim de semana deixei desligado.

Quando cheguei no Recife liguei novamente. Havia um recado na caixa postal que dizia:
- Taciana, é Claudionor Germano, gostaria de falar com você. Ligue por favor porque se eu ligar você desliga.

Sabe essas horas em que a ficha vai caindo aos poucos? Foi então que me lembrei das músicas que cantou, da voz, que só ouvia nos clubes e carnavais. Pensei: meu Deus, era Claudionor Germano mesmo!

Liguei.

- Claudionor, é Taciana.

A voz dele parecia de alívio.

- Taciana, quero muito falar com você. Desculpe pelos telefonemas, mas achei que ia saber quem era.

Não fosse esse meu desligamento talvez eu tivesse atinado para as músicas e voz, mas sou desligada.

Marcamos então na Cultura Nordestina, da minha amiga Salete Rêgo Barros. Contei toda a história e ela riu demais.

Enfim nos encontramos. Ele queria agradecer a um texto que fiz em homenagem a ele na minha revista. Na verdade uma pequena crônica falando sobre meu primeiro carnaval no Clube Português.Não precisa dizer o quanto me desculpei pela indelicadeza de desligar o telefone. Caso a edição estivesse sido recente, eu me lembraria, mas foi uma edição mais antiga, por isso nem atinei.

Na ocasião me deu de presente vários desenhos de Abelardo da Hora, uma coletânea que ele disse quase não conseguir. Fiquei muito feliz com a delicadeza e ficamos amigos. Fiz uma outra homenagem a ele na Livraria Jaqueira, com direito a poesia, música e depoimentos de vários amigos. Na ocasião a poesia foi ensaiada com o grupo Som da Terra, tornando-se música no CD dos 40 anos do grupo.

Deixo aqui a letra do frevo, resultado da poesia com alguns ajustes do Som da Terra na melodia, fruto desta inusitada história de encontro. Coisas assim parecem só acontecer comigo.

(Taciana Valença)

NA VOZ DE CLAUDIONOR

Eu bem me lembro
Não podia esquecer
Foi meu primeiro baile
E estava a florescer

Ao som do Ela é Bela
Já dizia sim senhor
Quando o frevo começava
Na voz do Cantador

Sempre ouvi dizer
Que numa mulher
Não se bate nem com uma flor
Esses versos tão bonitos
Até hoje ouvimos
Na voz de Claudionor



Passado todo um tempo
De bons momentos
Que ele nos reservou
Deixando marcas de alegria
Dos carnavais
Que eternizou (bis)

 (Taciana Valença/Som da Terra)


quinta-feira, 12 de julho de 2018

SOB O BATOM


Sobre a nitidez veio a fumaça,
asfixiando o deslumbre.
E nada é tão inocente
quanto a lógica...
Voltar a lugar nenhum
atravessar duras terras
temendo ver além da mulher
que não se funde em si mesma...
Nada é eterno
no terror da finitude,
animal acoado, corpo transformado,
sem tropas ou salvação.
Há um não entre as baixas das marés,
reféns de tantas luas,
mãos pesadas sobre a cabeça
que em vão tenta emergir.
Talvez nem mesmo exista -
agarrada na barra da saia da vida,
levada por entre as orquestras
cumprindo destino insabido.
(Taciana Valença)

segunda-feira, 2 de julho de 2018

ACOSSADO


Em mudo pacto vivem mundos,
num cercear quase sagrado.
Fere, enaltece, julga, absolve, condena.
Ludibria o que adora,
ensurdecendo aos quatro ventos.
Nó de marinheiro, barco ao relento.
Dias de ecos, fragmentos…
Enxerto de palavras, inflando sentimentos
entre conforto e inconformidades.
Refúgio do cais tão longe,
donde barcos se avistam
por entre turbilhões de máquinas,
pensantes, agonizantes, apreensivas.
Desérticas pulsações, vagos semblantes.
Vida pulsante.

(Taciana Valença)

EMBARGADO


És linhas entre pontos
que se afiguram e não se mente.
Demente, dormente, ardente...
Um quê em mim de continuidade.

Esconderijo secreto,
traço firme de verdades.
Som em cadência, urgência única,
toda anuência.
Te persigo em cada sopro,
em cada trago peito adentro,
onde repleta te vejo
e para meu mundo te trago.
E deixo-te ir ao teus recantos,
garimpando o que guardo,
adormecendo entre tua intrepidez
e meu covarde embargo.
(Taciana Valença)

terça-feira, 26 de junho de 2018

OSSOS DO OFÍCIO




Tomou um banho demorado, ainda pensando ter enfim conseguido fazer com que ela aceitasse o convite para jantar. Foram várias investidas sem sucesso. Mas, enfim, chegara o grande dia. Nas mãos um suor frio enquanto escolhia a roupa adequada para a noite especial.

Era claro que ela, tão pura e ingênua, precisava da sua ajuda. Desta vez, não como profissional, mas como ser humano que deseja ajudar ao próximo. Mais uma vez teria que deixar a ética de lado. Paciência. Ossos do ofício. Afinal, era para isso que ele, desde muito, acreditava ter nascido: ajudar ao próximo e, especialmente, moças assim, ingênuas e desamparadas, que sofrem com as injustiças da vida e ficam indignadas com os seres ditos humanos. Como podem ser cruéis? Por isso, ele precisava mais uma vez tomar as providências.

Ao entrar no restaurante, percebeu que já estava lá. Cabelos negros e cacheados na altura dos ombros, pele alva, ar angelical, tão característico da sua delicada personalidade. Um cristal.

Ficou observando um pouco de longe antes de se aproximar. Usava um vestido longo preto de um ombro só. Tinha uma postura impecável, resultado, talvez, dos anos de ballet na infância e adolescência, como contara numa das suas sessões. Não, uma mulher daquela não merecia sofrer.

Aproximou-se. Ela sorriu ao vê-lo. O brilho em seus olhos denunciara a aprovação do visual. Estava impecável. Paletó azul-escuro, camisa branca e gravata vermelha. Beijou-a delicadamente no rosto enquanto o garçom afastava a cadeira para que pudesse sentar. 

Ao lado dele suas angústias, desesperanças e sofrimentos desapareciam. Era seguro, determinado, bonito, sincero, perfeito. Suas palavras a acalmavam, mostravam o quanto a vida poderia ser bela. Sentia profundamente que desejava ajudar. Porém, talvez estivesse se apaixonado durante o tratamento. Mas isso ele não sabia, ainda.

A noite não poderia ser mais agradável. A conversa seguiu mais leve, numa informalidade que ambos não conheciam. Estavam tão felizes que nem perceberam o tempo passar.
O restaurante já havia fechado e eram os únicos ainda no ambiente. Os garçons, solícitos e atenciosos, não os deixaram perceber o adiantado das horas.

Ficariam ali por muito mais tempo, pois a conversa parecia não ter fim. Ela lembrou que teria atendimento no dia seguinte e no primeiro horário da manhã. Sabia disso porque era ela que estava marcada.

No carro, ainda sorrindo e muito felizes com o encontro, uma surpresa: tirou uma taça do porta-luvas e ofereceu-lhe uma dose de uma garrafinha de vinho que adorava e sempre trazia quando viajava. Não beberia por estar dirigindo. Então beijou-a nos lábios, com carinho.

Ligou o carro e pegou a estrada de volta. Um suave blues acompanhava o retorno. Olhou para ela então. Sua cabeça relaxada pendeu para o lado da porta. Observou. Parecia um anjo dormindo em sono profundo.

Foi então que parou o carro. Abriu sua porta e carregou-a nos braços até o local onde, rodeada de flores do campo, dormiria enfim o sono dos anjos. Deitou-a, cobrindo-a de terra. Com os olhos cheios de lágrimas disse as últimas palavras:

- Fica em paz, meu amor, este mundo não a merece. Estou feliz em poder ajudar.

(Taciana Valença)



TELA: O BEIJO, de Klimt, "poeta da Arte Nova e do Simbolismo.
Concluída entre 1907 e 1908, "o Beijo" oferece mais do que uma interpretação. Poderá representar a felicidade, bem como a união erótica, assim como a identidade dos dois sexos, numa só construção, feita pelos dois. Ainda assim, a forma "em auréola" que é feita pelas costas masculinas e que envolve o casal parece simbolizar a masculinidade protetora do amor de ambos. A mulher, ajoelhada, encontra-se numa posição passiva. No entanto, apenas a face da mulher é mostrada, o que a enfatiza face ao homem.
O arbusto constitui um vestígio do realismo. E Klimt gostava de flores, bem como do enlace humano. Mas notam-se características do Simbolismo, através das fitas douradas nos pés da mulher que serviriam para representar o cabelo das "femmes fatales", com o qual seduziriam as suas vítimas.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

## CONVERSAS AO PÉ DO RAPÉ ##


Assim que chegava ia logo para o seu quarto. Cabelos brancos, enormes, estavam sempre presos num coque. Olhava para a porta, a visão já muito ruinzinha e perguntava: Taci? 
Ó minha filha! Dava um sorriso gostoso, desses que só bisavó sabe dá. Estava muitas vezes com seu radinho de pilha encostado ao ouvido, concentrada nas novelas. Mas quando eu chegava e sentava na cama ela começava a contar suas histórias.
Algumas eu já sabia de cor, mas adorava ouvir novamente. Ela parecia reviver. E me diga, tem nada mais gostoso do que deixar que o outro reviva sua vida, seus momentos mais marcantes?
Ah, eu deixava, tantas vezes quantas ela repetisse.A impressão que me dava é que ela tinha sido muito feliz, tal o gosto com que contava os fatos. Pelo que dizia, meu bisavô era um verdadeiro cavalheiro. Lembro bem quando contava dos passeios e um dia me disse que ele não comprava as entradas para o cinema, comprava o “permanente”. Não sei exatamente o que era, mas era algo como comprar as entradas para um mês todo. Bem, devia ser. Ela explicou mas não lembro.
Ela tinha uma latinha de rapé, que chamava de torrado e vivia colocando nas narinas. O cheiro era forte e sempre fora um objeto curioso para mim. Mas sabe que eu nunca tive a ousadia de tocar? Às vezes dava vontade de pedir para colocar em mim só para saber que efeito teria, já que usava todos os dias e parecia ser realmente viciada naquilo, mas eu sempre tive muito respeito pelos vícios peculiares de cada um e também achava que não iria gostar.
Mas a latinha de rapé fazia parte do contexto, do cenário e da admiração que eu tinha por aquela vó de cabelos tão branquinhos e sorriso aberto. Sempre que podia sentava na cama e ficava viajando nas histórias.
Ela ficou doente (nossa, eu nunca tinha visto ela ir a um médico!) e como tinha dificuldades para andar por conta de uma artrose, levaram o médico até lá. Depois da consulta, olhando-o da cabeça aos pés e já que não tinha nada a perder mesmo, falou: sabe que você é muito bonitinho?
Ela era assim, bem humorada e conversadeira. Quando chegava e perguntava como estava ela dizia: tirando a dor nas costas, a vista ruim, a dor nos ossos, e etc, etc, etc, está tudo bem. E ria-se. O riso era sempre um ponto final. Uma vez ela disse que quando passamos a rir das nossas próprias mazelas é sinal de que estamos evoluindo.
Já mais velhinha suas conversas perderam um pouco as estribeiras e um dia, querendo que ela recordasse as que já havia me contado, perguntei: e meu avô vó? Conta mais sobre ele.
E o resumo da ópera foi decepcionante, algo que me fez desconstruir todo o personagem perfeito que criei durante anos:
Era um galanteador. Não valia merrrrrrrrda! (e caprichou tanto no “r” que não esqueço até hoje!) E, naturalmente, caiu na gargalhada.
(Taciana Valença)


sexta-feira, 15 de junho de 2018

Na porta da vida



Fez morada debaixo do guarda-chuvas,
ficaria ali por horas no silêncio de si mesmo.
Alma se aquece em qualquer lugar,
sendo mistério a mistura desta quentura.

Por enquanto estava imune.
Observador das pessoas, detalhes da vida.
E quão vazias pareciam no vai e vem.
Pasto, chiqueiro, galinheiro, tudo igual.
Por qual das respostas clamava naquele dia?
O cheiro d'uma fornada próxima invadia suas narinas.
Um taxista parou, aleatoriamente, num achismo mecânico.
Dispensou com preguiçoso aceno.
Difícil aquietar-se no mundo,
mesmo em peregrinação solitária.
A vida em si solitária, enorme cela.
Tempos árduos de apreensão.
No fétido canal o mundo se esvai...
Coração cravado no peito em dor de leito.
Romantismo a rondar vida tão seca.
Bate o murmúrio das horas. E agora?
(Taciana Valença)

Vitória Régia



De tão Régia 
as tardes regia. 
Em plagas d'água varando a noite,
ao comando raiar do dia.

Imponente sobre verde espelho,
leito sóbrio de poesias,
Régia, regeu, regia,
dias de alegria.
Boiando em esplendor,
reina em território dominado
que nem Flor de Liz
tendo força em seu legado.
Regeu como regente,
regendo se perdeu,
em turvas águas sagradas,
sementes dos braços teus.
(Taciana Valença)
Foto: Taciana Valença (Praça de casa Forte-Recife)

domingo, 10 de junho de 2018

Última celebração


Pelas frinchas entre os sepulcros
jazem almas arrependidas,
tontas, tagarelando asneiras
perdidas sobre vidas banidas.

Moldagens erradas
n'arquitetura das memórias.
Para onde foram as glórias?
Donde estão os pergaminhos?
Jaz o corpo sem domicílio
sob argamassa de ilusão.
Impropérios dirão aos Deuses
sobre seus próprios engodos.
Dissimulados não enganam a todos.
As cortinas se fecham
e não há fio de sangue nos costados,
mas um mundo a ser julgado.
E se o juiz errou por um triz
ou corromperam nossas astúcias?
Por que agora mastigar a vida,
das pálpebras fechadas aos fios de minúcias?
Tempo de vento cruel,
d'um alívio dorido e de sorte.
Mundo que se derrama em vida,
dias em sentença de morte.
(Taciana Valença)

segunda-feira, 28 de maio de 2018

PEDAÇO DE SAUDADE



Pedaço de saudade...

Não tenho dúvida de que a pior hora era a de acordar. Mas ele ia religiosamente às 5 da manhã caminhar na praia. Entre o sono e a vontade de compartilhar com ele essas horas eu sempre escolhia ir, mesmo caindo de sono.
Então quando ouvia aquela bendita musiquinha do rádio: "vambora, vambora, olha a hora, vambora, vambora..." algo em mim pedia para me entocar debaixo do edredon e fazer que não ouvia. Mas ele batia na porta e dizia que estava indo. Era tipo, levanta se quiser ir. Eu ia.
A preguiça até pisar na areia da praia era mortal. Mas quando chegava e sentia a água lambendo meus pés já começava a despertar.
Caminhávamos de Piedade até Boa Viagem. Conversa leve, sol gostoso, alongamentos e corridinhas. Na volta o mergulho, lavando a alma para o dia que se iniciava.
Já em casa, banho, farda e café da manhã. O dia se iniciava leve e o corpo pronto para as atividades.
Sempre fui do mar, do sol e do despojamento. Ele adorava também, principalmente os banhos de mar. Dizia que se fosse pago as filas eram enormes. Eu concordava.
Eu gostava de ficar horas mergulhando, nadando ou simplesmente fitando o horizonte. Não sei se foi responsável por parte dessa minha ligação com a praia, mas sempre lembro dele ao fazer as caminhadas.
Hoje sem suas pegadas em paralelo, sem sem riso nem a sombra do seu boné que me confortava, sinto saudades e com isso revivo.
Seu porte atlético, seu bronzeado, seu jeito comedido ao comer, me faziam jurar que o teria por um bom tempo da minha vida. Mas ele se foi bem mais cedo do que eu esperava.
Isso doeu porque muito além de um pai, perdi um grande amigo. Não digo que parte de mim se foi. Não, não foi. Ele inteiro que ficou comigo!
(Taciana Valença)

quarta-feira, 16 de maio de 2018

PLENITUDE DO FIM




Deitou os versos em cova rasa
onde a alma volta a esmiuçar
cacos desmetrificados, despedaçados,
de poemas dantes perfeitos.

Uns inda se firmam
em raízes sofridas;
tantos se vão, nenhures,
se dissipam entre as nuvens.

Escapa o negro pó
entre os dedos,
qual sangue cremado
de pulso algemado.

Corpo jogado
sobre águas infiltradas
seios acesos
revestidos de lama, uma dama.

Tanto o que se acha,
vazios que se encaixam
na plenitude do fim
e do crer não mais ser.

Um rosto sorri
no céu do precipício,
das letras verdadeiras
de nomes fictícios.

(Taciana Valença)

sábado, 21 de abril de 2018

CICATRIZ




E eu que nem sabia
quantos céus
morriam em minha boca
naquela noite estrelada.
Prelúdio perturbador do que se desconhece. 
Na dúvida uma pausa, um gole, uma prece.
Alma trêmula qual luz de lampião,
recobrando os sentidos, voltando da beira d'algum abismo.
Ruídos de porta se ouvia, gritos de histeria.
Ilusão rodando o dedo sobre o gelo que se derrete, saturado de mim.
Atalho, rosário, camarim. Olhos em frente, morte nas laterais.
Parada na pensão, secas folhas ao chão. Cama sem mundo, reza, confissão.


(Taciana Valença)

sexta-feira, 6 de abril de 2018

EM TERRAS DE CORONÉIS




Puxei o cobertor que parecia não dar vencimento na madrugada (gelada!). Réstia da luz passava por debaixo da porta. Brisa miava no cio. Isso sempre me dava agonia! Apertava as coxas para esquecer a vontade de ir ao banheiro, isso era sempre uma aventura no corredor. 

Medo, espera, desejo.

Depois do banho quente a camisola vermelha, um pedido que não podia esquecer. 

O perfume, um presente roubado das andanças que disse não combinar com a feiura da mulher que usava. Fez falsos elogios, meteu-se no quarto e ao sair enfiou o perfume no casaco, contou-lhe um dia, aos risos. Um perfume daquele não combinava com mulher feia.
Ah! Por que sempre ficava assim tão nervosa, tão ansiosa?

Silêncio quebrado apenas pelo coachar dos sapos e vez por outra vozes que vinham da estrada de barro que rodeava a fazenda. A lagartixa no teto fazia companhia. O vento batia nas cortinas. Pés gelados e pálpebras pesadas. Mas não podia se render ao sono, ele viria. 

Havia dispensado Cândida dos seus serviços, mas agora daria tudo para que trouxesse um café na cama. Não, não podia correr o risco de tê-la por perto. 

Era quase sempre assim, a dúvida. Primeiro mandava chamar Agostino para ter com o coronel Ferreira. Era o sinal de que chegara.
Sabia que iria a qualquer hora, não podiam brincar com suas exigências . Só em pensar que estava por lá e que tudo às vezes não passava de um motivo para vê-la lhe tirava o sono. 

Às vezes a estratégia dava errado e ele não podia sair, mas quando a visita era na Fazenda do coronel Ferreira as chances eram maiores, pois sempre deixava que o bando pernoitasse na propriedade. 

Na sala falava, falava e falava, de todas as exigências muito poucas deixavam de ser atendidas. Nem mesmo precisava pedir comida, dormida e até mesmo alguns dias se preciso fosse. A conversa era sempre longa. Pensava nela. A fala pausada e mansa do Ferreira, como ele chamava, muitas vezes o tirava do sério.

- Desenbucha home! Vai ou não me dar mais um cavalo? O Zapata morreu, preciso de um!

- Está bem, só mais este!

Ele sabia que não era verdade, sabia que pediria mais e que cederia em nome da segurança da fazenda e de suas terras, aquele homem era capaz de tudo quando queria algo.

- E o senhor, Agostino, cede-me pedaço de terra para o churrasco? Com o seu boi, claro.

Agostino acendia mais um charuto passando a mão no resto de cabelos que lambia a testa oleosa. Magro, alto e bem vestido, era a lombriga de pobre enfeitada, apelido dado nos bastidores que o fazia rir ao vê-lo pra lá e prá cá tentando dar uma certo suspense na resposta. O que ela vira naquele sujeito? Logo ela, tão faceira, fogosa.

Corria para que as coisas se definissem mais rápido e pudesse então encontrá-la.

Estava certo que o esperava. Pela hora Maria já estaria dormindo com o bando, sabia que sempre demorava nessas conversas, que tinham que ser na madrugada para não chamar a atenção.

- Está bem, mas há se ser festa muito discreta, no fundo das terras e o boi não sei, vou pensar, talvez dois leitões esteja de bom tamanho. 

-Está certo assim, deixa o boi para uma próxima oportunidade, quem sabe para comemorar a cabeça daquele verme covarde da volante.
Já havia falado demais, mas queria que ambos continuassem a conversa. Ria-se por dentro observando os dois coronéis. No fundo uns frouxos com armas na cintura brincando de acender charutos com poses de machos. Então decidiu vê-la. Pediu aos dois que resolvessem sobre sua última proposta porque iria dar uma rápida saída. 

- Vou assuntar em terras próximas e volto já, por favor discutam sobre o meu pedido enquanto não chego.

Quem era doido de perguntar para onde? 

Saiu em disparada pela estrada. O galope acompanhava o coração que começava a derreter só em pensar naquela mulher. Tinha certeza que o esperava. Tantas vezes se perguntou o que ela vira nele. Um bruto, temido por todos, sem chão certo e duro feito rocha, pelo menos aos olhos dos outros. Para ela era tudo. Um gentleman.

Apeou dando uma margem de segurança para não ser visto. Sabia que sempre deixava a porta aberta nessas ocasiões. Abriu a porta, pegou um copo e tomou um gole do Whisky mais caro do coronel.

- Aquele pirangueiro!

Observou a sala, estava tudo tranquilo. Seguiu o corredor até o quarto do casal. Abriu o trinco devagar na intenção de fazer uma surpresa.

Cansada de esperar caiu no sono. Os cabelos soltos e negros emolduravam seu rosto. Sobrancelhas grossas, nariz afilado, a camisola vermelha contornando seu corpo marcava a cintura fina e as ancas. Ficou parado olhando.

Aos poucos se aproximou, pensando que não poderia perder tempo pois o estavam esperando. Abaixou-se e, com carinho, afastou os cabelos que caíam nos olhos. Ela, num sono leve, despertou. Olhos brilhantes e um belo sorriso. Derreteu-se. 

Então envolveu os braços em seu pescoço e mordendo-lhe de leve a orelha balbuciou:

- Minha luz, meu Lampião.

(Taciana Valença)

EU MORO NUM VERSO (TACIANA VALENÇA)