sábado, 22 de junho de 2019

OUSADIA




Incrustada sobre as pedras
já não me emociono ou me comovo,
asas soltas de anjos entre bestas feras,
mundo de medonhos gritos que já nem ouço.

Partiram o pão, levaram os pedaços.
Riram da arte, do mundo fizeram deboche.
Desfeitos foram tantos sonhos e laços;
arregalo os olhos entre vazios fantoches.

Donde estará o grande poderoso?
Olho das pedras, sim, petrificada.
Qual será enfim o ápice do seu gozo?
Terra em chamas, abandonada?

E me olho no espelho,
no fartar de um breve existir,
peço ao Universo luz e conselho
carga maior de força no resistir.

Na palidez destes versos tristes,
regados a chá de pau e canela,
aborto este mundo que insiste,
preparando o próximo chá de panela.

Taciana Valença

sexta-feira, 26 de abril de 2019


Bendita morte que não chegou,
escorregou no tempo 
e ao invés de ter-me, 
me amou.

(Taciana Valença)

sexta-feira, 19 de abril de 2019

VEZ POR OUTRA




Vez por outra a coragem arrefece,
olha pra vida de jeito cabreiro;
se esquece na cama,
não larga o travesseiro. 

(Taciana Valença)

CICATRIZ





Cicatriz
E eu que nem sabia
quantos céus
morriam em minha boca
naquela noite estrelada.
Prelúdio perturbador do que se desconhece. 
Na dúvida uma pausa, um gole, uma prece.
Alma trêmula qual luz de lampião,
recobrando os sentidos, voltando da beira d'algum abismo.
Ruídos de porta se ouvia, gritos de histeria.
Ilusão rodando o dedo sobre o gelo que se derrete, saturado de mim.
Atalho, rosário, camarim. Olhos em frente, morte nas laterais.
Parada na pensão, secas folhas ao chão. Cama sem mundo, reza, confissão.

(Taciana Valença)


Delicadeza
Tempos mel,
segredos abelhas,
zumbir constante.

Ludibriados direitos à inocência.
Comia ternura, adivinhava abraços. 
Pitangas doces vermelhas em explosões inesperadas.
Sombra em água perfumada. 
Frágil alma dentro das saias, 
arrepiando-se em sintomas do coração.
Furtivo tempo d'uma ilusão. 

(Taciana Valença)

sábado, 30 de março de 2019

DEVANEIOS


Não se fala de boca cheia.
O centro do Universo arde
e eu mastigo a Terra com receio.
Úmida, sem humildade.

Tudo desce goela abaixo.
Então seguro o jorro do vômito
para não ver o asco ir ao chão.
Perdão, perdão, por ser tão pouco.
O ôco incomodativo questiona
se dá pra sair do umbigo 
e ir à porta da casa, subir o morro,
pagar promessa, sem pressa.
Úmida sim, sem humildade.
Os lábios se abrem vermelhos
e a língua rima com teus lábios
que já nem ouvem meus conselhos.
E enquanto o vinho esquenta, eu esfrio,
estudo o hálito, os dedos e as mãos
que erguem a taça do vinho contra a luz;
e ao mover-se em círculos, seduz.
E o mundo é um sedutor algoz
enquanto vítima, me rendo;
fazendo rap com discurso alheio,
distraída ao que me resta, carro sem freio.
O que importa, se ao passar daquela porta
já não te vejo; sem cio, pelo parque vagueando,
dedilhando o banco vazio sob a garoa.
Pele arrepia, coração contrabando.
Vulcão extinto reclama a nova ordem.
Ciclos se vestem com capas de frio
onde nada faz muito sentido
e até mesmo das horas do dia eu duvido.
(Taciana Valença)

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Turvas águas



Às cegas deslizo solta
sobre turvas águas correntes
d'uma doce eternidade,
braços teus seguem em mente, 
tua boca em minhas vontades.

(Taciana Valença)

sábado, 9 de fevereiro de 2019

OSSOS DO OFÍCIO




Tomou um banho demorado, ainda pensando ter enfim conseguido fazer com que ela aceitasse o convite para jantar. Foram várias investidas sem sucesso. Mas, enfim, chegara o grande dia. Nas mãos um suor frio enquanto escolhia a roupa adequada para a noite especial.

Era claro que ela, tão pura e ingênua, precisava da sua ajuda. Desta vez, não como profissional, mas como ser humano que deseja ajudar ao próximo. Mais uma vez teria que deixar a ética de lado. Paciência. Ossos do ofício. Afinal, era para isso que ele, desde muito, acreditava ter nascido: ajudar ao próximo e, especialmente, moças assim, ingênuas e desamparadas, que sofrem com as injustiças da vida e ficam indignadas com os seres ditos humanos. Como podem ser cruéis? Por isso, ele precisava mais uma vez tomar as providências.

Ao entrar no restaurante, percebeu que já estava lá. Cabelos negros e cacheados na altura dos ombros, pele alva, ar angelical, tão característico da sua delicada personalidade. Um cristal.

Ficou observando um pouco de longe antes de se aproximar. Usava um vestido longo preto de um ombro só. Tinha uma postura impecável, resultado, talvez, dos anos de ballet na infância e adolescência, como contara numa das suas sessões. Não, uma mulher daquela não merecia sofrer.

Aproximou-se. Ela sorriu ao vê-lo. O brilho em seus olhos denunciara a aprovação do visual. Estava impecável. Paletó azul-escuro, camisa branca e gravata vermelha. Beijou-a delicadamente no rosto enquanto o garçom afastava a cadeira para que pudesse sentar.

Ao lado dele suas angústias, desesperanças e sofrimentos desapareciam. Era seguro, determinado, bonito, sincero, perfeito. Suas palavras a acalmavam, mostravam o quanto a vida poderia ser bela. Sentia profundamente que desejava ajudar. Porém, talvez estivesse se apaixonado durante o tratamento. Mas isso ele não sabia, ainda.

A noite não poderia ser mais agradável. A conversa seguiu mais leve, numa informalidade que ambos não conheciam. Estavam tão felizes que nem perceberam o tempo passar. 
O restaurante já havia fechado e eram os únicos ainda no ambiente. Os garçons, solícitos e atenciosos, não os deixaram perceber o adiantado das horas.

Ficariam ali por muito mais tempo, pois a conversa parecia não ter fim. Ela lembrou que teria atendimento no dia seguinte e no primeiro horário da manhã. Sabia disso porque era ela quem estava marcada.

No carro, ainda sorrindo e muito felizes com o encontro, uma surpresa: tirou uma taça do porta-luvas e ofereceu-lhe uma dose de uma garrafinha de vinho que adorava e sempre trazia quando viajava. Não beberia por estar dirigindo. Então beijou-a nos lábios, com carinho.

Ligou o carro e pegou a estrada de volta. Um suave blues acompanhava o retorno. Olhou para ela então. Sua cabeça relaxada pendeu para o lado da porta. Observou. Parecia um anjo dormindo em sono profundo.

Foi então que parou o carro. Abriu sua porta e carregou-a nos braços até o local onde, rodeada de flores do campo, dormiria enfim o sono dos anjos. Deitou-a, cobrindo-a de terra. Com os olhos cheios de lágrimas disse as últimas palavras:

- Fica em paz, meu amor, este mundo não a merece. Estou feliz em poder ajudar.

(Taciana Valença)

TELA: O BEIJO, de Klimt, "poeta da Arte Nova e do Simbolismo.

Concluída entre 1907 e 1908, "o Beijo" oferece mais do que uma interpretação. Poderá representar a felicidade, bem como a união erótica, assim como a identidade dos dois sexos, numa só construção, feita pelos dois. Ainda assim, a forma "em auréola" que é feita pelas costas masculinas e que envolve o casal parece simbolizar a masculinidade protetora do amor de ambos. A mulher, ajoelhada, encontra-se numa posição passiva. No entanto, apenas a face da mulher é mostrada, o que a enfatiza face ao homem.

ROCK BLUE


Olhou para a calça de veludo azul sobre a cama. Não ousou vestir (ainda não). Caberia o tanto a mais do que era? Caberia tanta ousadia na calça que fora usada tão "sem grilos"?
Riu-se da palavra cafona, tirada da boca escancarada da calça.
A batida da bateria ainda se fazia ouvir ao longe. Nem parecia tão longe, pois ainda sentia o cheiro dos cachos do cabelo dele, impregnado nas ventas da lembrança, balançando entre as batidas e que um dia fizeram seu coração quase parar, pelo tanto que disparou.
Novamente olhou para a calça, levando as costas da mão ao rosto.
Muito do que passou ficou...
Um gosto ácido lhe veio à boca. Guardou a calça com a alma rota.
(Taciana Valença)

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

PESCADOR



E voltou o pescador.
Qual miragem n'alvorada.
Barbas espuma, cabelos brumas...
Sol refletindo na seca garrafa de pinga.

Era sim, o mesmo barco,
rastreado pelo vento,
velho conhecido casco
de fechadas noites e de luas.

Era ele, lembro bem.
Peixe pequeno em ponta d'anzol
a buscar robalos entre cardumes.
Donde veio, por onde andou?

Talhado corpo em madeira
que agora desancorou.
Braços fortes, saudosas cordas
que do tempo escapou.

(Taciana Valença)


quarta-feira, 12 de setembro de 2018

DIAS DE CRAVO E DE CÉU



Já tive dias de cravo,
também de rosas em botão,
dias de amores bravos,
lentas horas, velha canção.

Sol ao acaso, nascido assim.
Foi quando o dia me pediu perdão,
tendo rezado de todo jeito, prece no peito,
nome rasgado afogado em Jasmim.

Nada que não passe
numas boas braçadas em mar aberto,
certo, certo, não certo...
Em paz, peito aberto.

Debruçada sobre o horizonte
penso nos montes, sem vista para ao mar.
Faço avião de papel, empino,
sigo a linha do céu.

(Taciana Valença)

EU MORO NUM VERSO (TACIANA VALENÇA)