terça-feira, 11 de abril de 2017

RECEITA DE BOLO - Taciana Valença



RECEITA DE BOLO - Taciana Valença


Sentiu agonia. Garganta seca. O suor escorria pela testa. Ainda apoiado ao travesseiro pegou o copo. Virou a quartinha. Nada. Vazia. A Mercês já fora mais atenta às suas necessidades. Olhou para ela. A boca bem desenhada, entreaberta, respiração profunda, um descaso para a vida. Não tendo coragem de acordá-la desceu as escadas a contragosto, resmungando aos quatro cantos sobre o inusitado incômodo. Agora só pensava em roupas e jóias.
A cozinha parecia menor do que se lembrava. Serviu-se e deixou-se cair numa cadeira. Olhou à sua volta. Está aí uma parte da casa da qual não se lembrava. Ficou por um bom tempo recordando os dias naquele engenho. Os bolos e biscoitos que Naná fazia para ele quando criança e que tanto gostava. Sempre ao final da tarde segurava-o pelas mãos carregando-o para a cozinha a fim de fazer uma grande farra gastronômica. Ele, depois de muito brincar e com fome de leão ia feliz - por um instante pareceu ouvir o simbora homem -, dito com voz firme e melodiosa. Metia a mão na massa, lambia os dedos dela e dele numa brincadeira cujo gosto nem de longe se comparava ao produto final. Depois de lamber todo o tacho da massa corria para o banho e quando descia a mesa estava posta. Bolo fumegando, queijo, leite. Ah. Isso era incrível. Seus olhos de mel o conduziam fácil fácil e assim também tomava as lições com toda liberdade, já que o pai permitia que estudasse, pois fazia parte da família.
Após a morte do seu pai herdara o engenho com tudo e todos. Sua mãe o deixara ainda criança, vítima de uma turberculose, com isso a Naná o criara com todos os mimos. Na verdade era quase uma irmã mais velha, na flor dos seus 20 anos. Traços indígenas, pele macia, cabelos deslizando sobre os ombros, sorriso de fonte a desaguar. A mãe havia servido muitos anos à família, uma criada fiel e dedicada, mas com saúde debilitada se foi, deixando a pequena Naná aos cuidados da sua mãe. Ambos órfãos de mãe, ela amadurecera cedo demais por conta da responsabilidade que pesara sobre os ombros, a principal era cuidar dele, pois seu pai não parava, sempre dando as ordens pelo engenho, pulso de ferro. Durante uma cavalgada um tombo. Jamais voltou a ver seu pai. Restara um ao outro e todos os afazeres do engenho que ela cuidou até que completasse a maioridade. Mostrou-se então uma mulher de luta, cuidando dos empregados e propriedade ao mesmo tempo em que passava tudo para ele.
Os anos seguiram e já formado ele então assumiu tudo que aprendera, deixando para ela os serviços de casa e os empregados. Foi então que resolveu casar com a filha do melhor amigo do pai. Moça bonita, prendada e quieta. Estava na hora. Mercê assumira em parte a organização da casa e Naná já não aparecia, deixando para outros criados os serviços braçais, ficando apenas na administração da mesma e dos empregados do engenho. Ela mudara desde seu casamento e ele nunca soube o porquê.
Aos cinqüenta anos ela manda as ordens vencendo as rabissacas de Mercês que assumiu enfim seu descomando. Eles jamais se viam, já que todas as contas e relatórios, feitos com uma precisão de mestre, eram entregues a ele pelo seu secretário, que, diga-se de passagem, era encantado com ela. Ela não parecia tão mais velha que ele, ao contrário, parecia mais nova que sua esposa. Vê-lo casar foi extremamente triste, apesar de permanecerem na mesma casa. Suas mãos deslizaram nos cabelos daquele menino-irmão, ajeitando o paletó. Parecia vê-lo ir para a forca. Adoeceu durante dias, sumida dentro dos lençóis.
Voltou a si quando percebeu o sol entrar pela fresta da janela. Havia passado o resto da madrugada no passado, na cozinha, junto aos que perdera um dia. O sono se foi com a Lua. Abriu a janela da sala e recebeu a brisa d’uma manhã com sabor de saudade.
Cantarolando Naná entrou na sala agarrada ao seu livro de contas tomando um susto quando o viu ali, de janela aberta parecendo sonâmbulo. Sentindo a presença de alguém ele se virou. Uma sensação estranha o tomou. Reconheceria aqueles olhos em qualquer tempo. Os anos não passaram para ela. O mesmo ar brejeiro, olhar vivo. Algumas mulheres são assim, não precisam de adornos. Talvez ela tivesse mesmo sangue indígena. Ele sim, aos 41 anos estava muito abatido tentando dar conta das exigências da mulher que, por não ter filhos, aporrinhava-o em busca de novidades da cidade grande para comprar. Ela olhou desconfiada, mas de repente pareceu também voltar no tempo e ver aquele meio-irmão que durante anos sentiu falta. Algo a fez correr para seus braços sem pensar. Ele então a abraçou percebendo que também sentira falta dela durante esses anos, dos cuidados, do carinho, da voz. Ela não mudara quase nada. Enfim confessou que havia descido para tomar água e que havia se lembrado dos lanches na cozinha. Ah, como também sentia saudades, disse ela. Agarrou então suas mãos e, sendo ainda muito cedo, correu puxando-o para a cozinha. Faremos um bolo. Tomado de surpresa ele riu com sua vivacidade, a mesma Naná de sempre. Correu a buscar os ovos, trigo açúcar. Vamos, me ajude homem! Há muito não se sentia assim. Correu a ajudá-la.
A colher de pau escorregava da sua mão e com seu sorriso de luz ela o ajudava a mexer. Vestido acinturado, ancas perfeitas. Deus, ela é quase minha irmã. Atrás dela ele já não pensava no bolo. Naná sentia o calor das suas pernas. Mexiam a massa. Mexiam, mexiam, mexiam. Sentiu saudades dele, não mais do menino. Virou-se disfarçando o nervosismo. Hora de provar a massa. Dedos melados recordavam a brincadeira. Línguas seguiam os caminhos da massa. Forno aceso aguardava. Escorria então pelo decote onde ele buscava desesperadamente os anos que deixara passar. Bocas, dedos, forno quente... Nas madrugadas se seguiram as receitas, ambos felizes inventavam deslizes. Mercês, cheia de dinheiro viajava em suas compras.
(Taciana Valença)

domingo, 2 de abril de 2017

ENSOPADA DE MIM


Torrencialmente

Ensopada de mim

Vivo extremos

Sem medo

Que me borre maquiagem

Ou mesmo desmanche os cabelos

Que na verdade adoro despenteados

Ou presos num coque displicente

Quanto mais eu melhor

Desligada sim

Ao que não me convence

Nem nunca convencerá

Superficialidades me cansam

Tanto quanto mal caratismos

Pessoas verdadeiras me fascinam

Da mesma forma

As que tem o que dizer

Pois encanto-me 

Com o que é encantável

Máscaras me enojam

Minha sensibilidade

Será sempre escudo

Por isso às vezes

Preciso apenas de mim

Assim, ensopada de mim mesma

Num delicioso dia de chuva

(Taciana Valença)

sexta-feira, 3 de março de 2017

DEIXEI



Saí deixando pelo caminho
nem sei mais quando
nem onde
nem por que
apenas deixei
deixei ir
como deve ser
como se deve deixar
deixar o verbo fluir
nas suas possibilidades
de exercer
sua função
de apenas deixar

(Taciana Valença)

sábado, 18 de fevereiro de 2017

SOB A NOITE




D'outro lado da noite
Devem estar as respostas, 
As lições, 
O bê-a-bá da vida,
Bem ali,
Escondidas,
Sob denso concreto,
Por não entender, durmo
Noite após noite,
Olhos assombrados
Tentando adivinhar
O quanto de mim 
Terei ainda que ser
Pra reaver meu mandato
Sem que flechas me  atinjam
Sem que sangre minha alma
Que já de tanto se esquiva
Sem respostas ou guarida
Morrendo nas palavras
Que sucumbem, do tanto,
Do nada...

(Taciana Valença)


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

SOBRE O TEMPO






Por que saber das horas
Se as palavras eram as certas
Se os olhos contemplavam
Quietos, fixos, sem fim
Se todo ali estava repleto de mim

Por que saber das horas
Quando nada importa mais
Além d'um momento que se eterniza

E está tudo certo,
Até mesmo a chuva
Molhando as asas dos pássaros,
Até mesmo o latido intermitente
De um cão carente

E está tudo certo,
Se tudo estava ali
Naquele momento
E era tudo o que importava

(Taciana Valença)

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

FILTRO DOS SONHOS




Ando filtrando sonhos,
Afastando pesadelos,
Mais atenda às mensagens
Que a vida me dá;
Em pleno voo
A coruja avisou
Dentro de casa
Asas abertas,
Sábio vendaval -
Males presos aos fios ficarão,
Raios de sol dissolverão,
Lá no topo da montanha
Sou mais eu,
Sonhos meus
Vida minha,
Lá, onde morre o horizonte
Eu renasço,
Nas minhas possibilidades
Deixando ao sol
Todo mal
E as meias verdades

(Taciana Valença)

DESACERTOS D'UM CORAÇÃO



A gente ajeita,
Conserta, refaz,
Pinta o que há de castigado...

Trabalha dia e noite
Solto, apertado,
Triste como um fado

A gente ajeita,
Pinta de vermelho
Cantarolando de felicidade,
Cai pincel,
Tiram nossa escada

Mas a gente volta,
Enxuga a lágrima
Que cai na boca salgada
Põe mais uma escada
Volta a pintar de alegria
Nossos dias

Ah! Chato ser dono
De coração mole
Que se deixa emocionar
Quer mudar o mundo

Ah, mas a gente volta
Mesmo porque não tem jeito
É aqui que tudo se resolve
E se não resolver tá resolvido

Coração devia vir com refil
A gente mudava...
Estaria tudo certo,
Mas a vida é assim,
Cheia de desacertos
E coração não tem refil...

(Taciana Valença)


sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

ESTAÇÃO ERRADA


Habita em mim essa alma
Cigana atravessando vidas
Inquieta sob o corpo
Sobrecarga
Que por vezes
Num impulso
Quero atirar fora
Num ímpeto d'uma liberdade
De correr até o próximo trem
Na sensação
Absurda e pesada
De ter descido
Na estação errada

(Taciana Valença)

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

## diferença ##



O que faz a diferença na vida é o modo como carregamos aqueles que fazem e fizeram a diferença no mundo, no nosso dia a dia, no nosso aprendizado. São muitos livros, muitas poesias, muitos contos, que, do mesmo modo que as pessoas, marcam muito ou sequer serão lembrados algum dia.

Guardo no meu coração coisas lindas que já escutei na vida, coisas inteligentes que ouvi de pessoas que se tornaram eternas em mim, outras coisas se igualam aos péssimos livros, às péssimas poesias e péssimos contos, ou seja, nem sequer são lembrados e muito menos registrados na história da minha vida.

(Taciana Valença)

domingo, 18 de dezembro de 2016

CUMPLICIDADE



Nem posses
Nem poses,
Apenas mansidão
Vontade de ficar,
Olhar,
Morrer num tempo perdido
No calor de um instante
Onde se morre por segundos
Querendo viver horas a fio
Não é corpo
É essa vontade imensa
De carregar tua alma
Bem aqui, dentro de mim

(Taciana Valença)

EU MORO NUM VERSO (TACIANA VALENÇA)