segunda-feira, 15 de julho de 2019

## Essa é para você, seu gordo! ##






Quando abri o janelão você estava lá, com aqueles olhos verdes e seu ar de superioridade. Você sabe, esse seu andar acima do meu, esse seu olhar para baixo, como ser supremo e superior , essa sua calma e equilíbrio, a andar na beirada da janela, isso me irrita às vezes, quando eu, apressadamente, estou a molhar as plantas e você fixa seus olhos em mim, como querendo perscrutar, ou quem sabe me insultar com essa calma inabalável de gato gordo.
Sim, você é gordo! Pronto falei. Sim, isso é bullying. E o que faz comigo também não é? Esse insulto silencioso de beira de janela, a me olhar de cima para baixo como se eu fosse um ser inferior.
Se tem sentidos apurados saiba que também tenho e sei o que está pensando de mim quando olha durante muito tempo e me dispensa com apenas um miado. Miado de gato gordo e curioso.
Pois hoje eu vou falar de você, dizer a todo o mundo o quanto é curioso e vadio, olhando as janelas dos apartamentos em dias quentes ou frios, esperando uma a tigela de ração com água para depois se deitar, preguiçosamente no sofá da sala dos seus donos, que se deixam dominar por essa sua empáfia!
Essa autonomia e independência, essa elegância de quem não sente carência. Parece que me considera de igual para igual. É muita ousadia para um simples felino. Você é muito é vaidoso, a se lamber o tempo todo e achar que pode tudo. Mas eu sei das suas fraquezas, dos seus medos. Você sobe, sobe, sobe bem alto e depois não sabe descer, tem medo!
É, também sei dos seus segredos, gato gordo!
Vou sair, e não me olhe da janela, não hoje, porque hoje eu não tô boa não!
(Taciana Valença)

terça-feira, 9 de julho de 2019

## TU ##

Em meus dias estais tu
a coser felicidade em fina linha,
a me fazer inteira
em nossos piores desertos.


Mais vale o riso, particular paraíso, 
pois somos em nós tão precisos.
Tua voz, meu sossego,
mesmo quando desassossegada.


Morro tragada pelos teus olhos,
desapareço entre teus dedos,
deixando-me engolir,
como se engole verso inteiro.


Guardo em meu ventre 
semente do teu gozo,
o mais íntimo da tua essência,
e assim em mim te coso.


Taciana Valença

VERSOS VENCIDOS


O poema perdeu a voz
o jeito
o respeito,
o brio.
Apunhalou o peito,
deixando grande vazio.

(Taciana Valença)

domingo, 7 de julho de 2019

## AQUILO ##






Aquilo na verdade não estava ali. Nunca esteve. Foi apenas criado por um desejo, uma vontade de que estivesse. Uma criação. Armadilha da mente, que mente, inventa, alimenta. Alimenta crias que crescem sem raízes.

E quando passamos o rodo e o pano, o chão aparece limpo, sem sinal algum de que ali, algum dia, algo fora realmente plantado, muito menos que tenha criado raízes. A ilusão é perigosa porque parece ser algo alimentado no ventre. Cresce. Sim, cresce. E existe, mesmo que não exista. Torna assim o corpo cúmplice e dependente de um acidente inventado pela mente, que mente!

O perigo da cria é o vício, o altar onde se coloca um nada, deixando assim o nada dominar. Isso é tudo que não se deve, pois crise de abstinência do nada é fado que adentra noites e madrugadas.

Aquilo é o inconsciente, transformando nada em convicção plena. E a pena é deixar que aquilo tome seu peito, num aconchego de manjedoura.

O jeito é deixar aquilo em algum canto. Trancar em um quarto escuro, deixar morrer à míngua. Libertar-se, enfim, do que se inventou. Pois aquilo é feito massa de modelar jogada na frente da mente, que deseja dar a forma que lhe convém. E se alguém não lhe tirar das mãos, assim como se faz com uma criança, ela mergulha na ânsia da cria que alivia os seus dias. Faz, alimenta e investe na cria, fazendo dela sua aliada, da vida e da guerra silenciosa travada com os dias.

Pois aquilo também é isso, que invento em meu caderno, cheio de céus e infernos. Túmulos e montanhas com vista para o mar, na dolorosa fragilidade de um existir que teima em nos enganar..

Coragem e fraqueza servidas à mesa, em colheres grandes e de sobremesa, dispostas a alimentarem o apetite da solidão, visto que tudo o mais é pura ilusão.

Pois o chão é batido, no braço e no pulso, a cada minuto, a cada soluço, no grande sertão do coração.

E nada causa tanta dor quanto perder aquilo que se criou.

(Taciana Valença)

sexta-feira, 5 de julho de 2019

SUMIÇO DO OVO


Um tanto tonta, coloquei os pés no chão, como de costume. Alonguei os braços para cima, para os lados, toquei na ponta dos pés (hábito diário). Pescoço para frente e para trás. Pronto! A primeira ginástica é esse preguiçoso, mas, habitual alongamento.

Sim, dormi demais, e no dia em que me dou a esse direito acho que estou devendo algo a alguém e enquanto penso, aflita e atrasada (estado perene em meu ser), percebo de repente que esse alguém sou eu mesma e que, por acaso, não estou me cobrando nada.

Com a sandália nos pés, ainda um pouco sonolenta, fui ao banheiro e à cozinha. Sentir o cheiro do café sempre me deixa mais esperta, por isso o faço antes do banho. Mas, excepcionalmente naquele dia, como estava atrasada, e não me recordo bem para quê, como disse, talvez porque estar atrasada seja meu estado permanente, resolvi tomar café logo, pois, além disso, acordei com fome.

Resolvi pelo básico: café com minha crepioca de queijo com banana. Simples e rápida. Coloquei a massa na tigela e peguei o ovo para adicionar à mistura. Foi quando o telefone tocou. É, parece que se o telefone não tocar o dia não começou. A contragosto fui atender. Sabe esses números que ligam quatrocentas vezes ao dia para você? Pois foi um deles. Dizem que são robôs e que ficam tentando até que algum desavisado caia na cilada. Sei não, mas não atendo.

Voltei. Peguei novamente o ovo. Por incrível que pareça o telefone tocou. Nossa! Somos mesmo reféns da tecnologia. Como havia deixado na mesa do corredor, saí, desta vez com o ovo que seria quebrado, na mão, e fui atender. Era minha irmã. Falamos e desliguei. Imediatamente entrou uma mensagem. Voltei, li, respondi. Outra: voltei, li, apaguei. Quer saber? Desliguei. Ninguém merece tamanho desassossego (nunca tinha percebido que essa palavra tinha tantoS eSSeS!).

Voltei para minha receita. Cadê o ovo???? Certeza de que saí com ele na mão! Voltei. Fiz o percurso: corredor, banheiro. Ah! Lembrei que quando desliguei o telefone coloquei água em alguns jarros. Essas coisas que a gente fica fazendo no meio do caminho. Olhei perto das plantas: nada. Não que não tivesse mais ovos, mas eu tinha que achar aquele, pois certamente não havia colocado ele de volta na galinha (falo da galinha artesanal, onde coloco os ovos). Olha que eu já perdi muitas coisas, mas nunca perdi um ovo.

E antes que me digam que essa história de ovo e galinha é coisa de Clarice Lispector eu vos digo: o ovo era meu e não da Clarice. O ovo dela era um ovo qualquer, aleatório. Clarice não queria quebrá-lo. Eu queria quebrá-lo e comê-lo no café da manhã. Ela viu o ovo, apenas, e percebeu que não podia estar vendo porque "ver o ovo nunca se mantém no presente". Ri quando lembrei da frase do conto O Ovo e a Galinha:  " No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança  de um ovo". Pois era exatamente isso: meu ovo era agora apenas uma lembrança. Como não lembrar de Clarice? E não tive como me conter ao, inevitavelmente comparar o conto ao fato real.  "Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo".  É brincadeira né? Pensei: Ela veio tomar café comigo e sumiu com o ovo, provocando essa lembrança. E quanto mais lembrava do conto, mais vontade de rir me dava. De repente estavam eu, Clarice e o não ovo, além da não galinha.
E se "a galinha é um grande sono", o ovo, definitivamente havia me tirado a sonolência com a qual cheguei à cozinha.

"– Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome." 

Sim, Clarice, eu estava com fome, sim. E se o ovo é a alma da galinha eu ia comer a alma da galinha  sem o menor constrangimento porque, até então, eu não tinha, nem de longe, lembrado do seu conto, nem do seu ovo, muito menos da sua galinha, que tem a posse do ovo e que se depender de mim eu diria apenas que sumiu "o ovo", não me importando que o mundo ficasse nu. Eu precisava da gema, da clara, do ovo todo e se ele me via eu não mais o via e isso me perturbava porque em algum momento ele iria apodrecer onde estivesse. Iria ficar preto e não mais branco e eu iria chamá-lo de preto e de podre, vivendo assim pra sempre. Vou chamar preto de preto, e a humanidade, assim, se perpetuará.

Perdi o grande sacrifício da galinha, Clarice, e o seu sonho inatingível. E se você não entendeu sua viagem, eu certamente entendi a minha. Não sou galinha, mas estou permanentemente sobrevivendo. Se a galinha não sabia que tinha um ovo, eu sabia, ele estava em minhas mãos até seu misterioso sumiço. Sim, eu ira comer (e comi) o mal desconhecido dela e não me deu congestão. Na verdade estou eternamente gestando a vida que quando enfim nascer, morrerá.

Pensei; -  a partir de certa idade você começa a perder as coisas com mais frequência: chaves, óculos e celulares são os mais habituais, mas um ovo???? Tenha paciência. Acho mesmo é que quando a idade vai chegando a gente nem pode mais esconder nada de ninguém, correndo o risco  real de escondermos de nós mesmos. Mas, voltando ao ovo: uma hora ele aparece, só não sei onde. Fui fazer, enfim, meu café da manhã. Dessa vez com telefone desligado e agarrada a um ovo como se ele, por conta própria, fosse sair correndo. Talvez ele tenha cumprido seu papel de ovo: me levar ao insólito conto de Clarice. 

Até agora ele não apareceu. Caso mesmo de desaparecimento. O que me leva a refletir sobre a frase: 
"Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez."

Instintivamente abri a janela e para minha surpresa: 

não, o ovo não estava lá. 

Taciana Valença

sábado, 22 de junho de 2019

LEVANTES




Coração partido, confesso,
ver-te imóvel observar a janela,
seguindo a luz, última súplica.

Que fossem raízes num jardim,
não a dor ao colchão enraizada
em dias trancada, fome de brisa.

Armadura de aço com vista para o mar.
Existes, e por existires imponha luta!
Não definhes em pesadelos que se arrobustam.

Levantes, reajas, mande as ordens!
Nada se abate sem que se autorize,
não largues vida à própria sorte.

Bem sei dos fantasmas e medos,
das tristezas e segredos
do bélico mundo interior.

Lança-te ao vendaval firme e segura,
agarra-te aos troncos e galhos de toda sorte,
mas não te ofertes sem lutas à morte.


(Taciana Valença)

LEVE



Estado de espírito:

LEVE....

Dane-se então!
Que o mundo me leve...
Vento arrastando ondas,
soltos braços e pernas,
olhos fechados, frio na barriga,
sol no rosto e a brisa fresca.
Sim, bem fresca, bem eu.

Taciana Valença

VAGANDO NO VAZIO





Não me obrigo a sorrir
por me cobrarem felicidade.
Prefiro lábios firmes, mesmo que tristes,
a sorrisos largos e vagos de vaidades...

Segue canção alternando dias,
muitas vezes a estação não escolho,
dias sem luz, noites sombrias,
em portas trancadas por ferrolho.

E se a alegria me cabe, sem mais,
assim, por um segundo que seja,
sem que pareçam tão formais,
sorrio e brindo feito princesa.

É que a vida resvala
nas mãos de um tempo escorregadio,
nos trancando na senzala
do imenso abismo do vazio.


(Taciana Valença)

TEU REFLEXO



És bordas finas,
língua passando ofegante.
Lágrimas escorrem
enquanto evaporam...
e de alegrias rendem noites.

Tão artesanais entre gostos,
texturas, cavidades...
Movem-se, estruturas de areia
ao sopro da madrugada,
ondas que a terra saboreia.

Fogo à beira-mar,
sussurros etílicos...
alguém ao longe dedilha uma canção
que ficou impregnada nas conchas,
invadindo dedos, braços, coxas e mãos.

E cantas mal, esqueces o refrão.
Mas o céu em ti é tão azul que encandeia,
queimando a retina do Universo,
e o vento seca o espumante em teu peito,
o mundo gira sob teu reflexo.


(Taciana Valença)

LUTO





Foi durante a madrugada que faleceu. Carente, dependente, desiludido e solitário. Talvez cansado de lutar, cansado de amar em vão, cansado de ter que estar sempre com uma carta na manga, na mão...
Sei não. Talvez baixa autoestima, vai saber!
Procuraram família, ou amigos mais chegados. Mas na falta do pai havia apenas a mãe a quem se dar o recado. Triste recado este. Amigos, apenas alguns gatos pingados que comungavam com ele essa espécie de vida alienígena num mundo egoísta e sem sentido, principalmente para os que sentem. Havia de ter um propósito maior. Mas estava exausto de procurar. Parecia viver batendo contra as paredes, sem conseguir achar caminhos, saídas. Acho que foi isso que acabou com sua vida.
No atestado de óbito, que a princípio não tinha causa definida, deixando médicos num dilema, estava escrito:
Falência múltipla de leitores do poema.
Estou de luto, por um amigo que cansou de lutar.

Taciana Valença

OUSADIA




Incrustada sobre as pedras
já não me emociono ou me comovo,
asas soltas de anjos entre bestas feras,
mundo de medonhos gritos que já nem ouço.

Partiram o pão, levaram os pedaços.
Riram da arte, do mundo fizeram deboche.
Desfeitos foram tantos sonhos e laços;
arregalo os olhos entre vazios fantoches.

Donde estará o grande poderoso?
Olho das pedras, sim, petrificada.
Qual será enfim o ápice do seu gozo?
Terra em chamas, abandonada?

E me olho no espelho,
no fartar de um breve existir,
peço ao Universo luz e conselho
carga maior de força no resistir.

Na palidez destes versos tristes,
regados a chá de pau e canela,
aborto este mundo que insiste,
preparando o próximo chá de panela.

Taciana Valença

EU MORO NUM VERSO (TACIANA VALENÇA)