sábado, 21 de abril de 2018

CICATRIZ




E eu que nem sabia
quantos céus
morriam em minha boca
naquela noite estrelada.
Prelúdio perturbador do que se desconhece. 
Na dúvida uma pausa, um gole, uma prece.
Alma trêmula qual luz de lampião,
recobrando os sentidos, voltando da beira d'algum abismo.
Ruídos de porta se ouvia, gritos de histeria.
Ilusão rodando o dedo sobre o gelo que se derrete, saturado de mim.
Atalho, rosário, camarim. Olhos em frente, morte nas laterais.
Parada na pensão, secas folhas ao chão. Cama sem mundo, reza, confissão.


(Taciana Valença)

sexta-feira, 6 de abril de 2018

EM TERRAS DE CORONÉIS




Puxei o cobertor que parecia não dar vencimento na madrugada (gelada!). Réstia da luz passava por debaixo da porta. Brisa miava no cio. Isso sempre me dava agonia! Apertava as coxas para esquecer a vontade de ir ao banheiro, isso era sempre uma aventura no corredor. 

Medo, espera, desejo.

Depois do banho quente a camisola vermelha, um pedido que não podia esquecer. 

O perfume, um presente roubado das andanças que disse não combinar com a feiura da mulher que usava. Fez falsos elogios, meteu-se no quarto e ao sair enfiou o perfume no casaco, contou-lhe um dia, aos risos. Um perfume daquele não combinava com mulher feia.
Ah! Por que sempre ficava assim tão nervosa, tão ansiosa?

Silêncio quebrado apenas pelo coachar dos sapos e vez por outra vozes que vinham da estrada de barro que rodeava a fazenda. A lagartixa no teto fazia companhia. O vento batia nas cortinas. Pés gelados e pálpebras pesadas. Mas não podia se render ao sono, ele viria. 

Havia dispensado Cândida dos seus serviços, mas agora daria tudo para que trouxesse um café na cama. Não, não podia correr o risco de tê-la por perto. 

Era quase sempre assim, a dúvida. Primeiro mandava chamar Agostino para ter com o coronel Ferreira. Era o sinal de que chegara.
Sabia que iria a qualquer hora, não podiam brincar com suas exigências . Só em pensar que estava por lá e que tudo às vezes não passava de um motivo para vê-la lhe tirava o sono. 

Às vezes a estratégia dava errado e ele não podia sair, mas quando a visita era na Fazenda do coronel Ferreira as chances eram maiores, pois sempre deixava que o bando pernoitasse na propriedade. 

Na sala falava, falava e falava, de todas as exigências muito poucas deixavam de ser atendidas. Nem mesmo precisava pedir comida, dormida e até mesmo alguns dias se preciso fosse. A conversa era sempre longa. Pensava nela. A fala pausada e mansa do Ferreira, como ele chamava, muitas vezes o tirava do sério.

- Desenbucha home! Vai ou não me dar mais um cavalo? O Zapata morreu, preciso de um!

- Está bem, só mais este!

Ele sabia que não era verdade, sabia que pediria mais e que cederia em nome da segurança da fazenda e de suas terras, aquele homem era capaz de tudo quando queria algo.

- E o senhor, Agostino, cede-me pedaço de terra para o churrasco? Com o seu boi, claro.

Agostino acendia mais um charuto passando a mão no resto de cabelos que lambia a testa oleosa. Magro, alto e bem vestido, era a lombriga de pobre enfeitada, apelido dado nos bastidores que o fazia rir ao vê-lo pra lá e prá cá tentando dar uma certo suspense na resposta. O que ela vira naquele sujeito? Logo ela, tão faceira, fogosa.

Corria para que as coisas se definissem mais rápido e pudesse então encontrá-la.

Estava certo que o esperava. Pela hora Maria já estaria dormindo com o bando, sabia que sempre demorava nessas conversas, que tinham que ser na madrugada para não chamar a atenção.

- Está bem, mas há se ser festa muito discreta, no fundo das terras e o boi não sei, vou pensar, talvez dois leitões esteja de bom tamanho. 

-Está certo assim, deixa o boi para uma próxima oportunidade, quem sabe para comemorar a cabeça daquele verme covarde da volante.
Já havia falado demais, mas queria que ambos continuassem a conversa. Ria-se por dentro observando os dois coronéis. No fundo uns frouxos com armas na cintura brincando de acender charutos com poses de machos. Então decidiu vê-la. Pediu aos dois que resolvessem sobre sua última proposta porque iria dar uma rápida saída. 

- Vou assuntar em terras próximas e volto já, por favor discutam sobre o meu pedido enquanto não chego.

Quem era doido de perguntar para onde? 

Saiu em disparada pela estrada. O galope acompanhava o coração que começava a derreter só em pensar naquela mulher. Tinha certeza que o esperava. Tantas vezes se perguntou o que ela vira nele. Um bruto, temido por todos, sem chão certo e duro feito rocha, pelo menos aos olhos dos outros. Para ela era tudo. Um gentleman.

Apeou dando uma margem de segurança para não ser visto. Sabia que sempre deixava a porta aberta nessas ocasiões. Abriu a porta, pegou um copo e tomou um gole do Whisky mais caro do coronel.

- Aquele pirangueiro!

Observou a sala, estava tudo tranquilo. Seguiu o corredor até o quarto do casal. Abriu o trinco devagar na intenção de fazer uma surpresa.

Cansada de esperar caiu no sono. Os cabelos soltos e negros emolduravam seu rosto. Sobrancelhas grossas, nariz afilado, a camisola vermelha contornando seu corpo marcava a cintura fina e as ancas. Ficou parado olhando.

Aos poucos se aproximou, pensando que não poderia perder tempo pois o estavam esperando. Abaixou-se e, com carinho, afastou os cabelos que caíam nos olhos. Ela, num sono leve, despertou. Olhos brilhantes e um belo sorriso. Derreteu-se. 

Então envolveu os braços em seu pescoço e mordendo-lhe de leve a orelha balbuciou:

- Minha luz, meu Lampião.

(Taciana Valença)

quinta-feira, 29 de março de 2018

PAZ E MOTIM




Alada alma
sem alardes.
Recatada rebeldia
em franzida testa
já imune.
Paz e motim
num discurso sem voz.
E o cheiro do mesmo perfume.
Lágrima tiro varando peito.
Palavras inebriantes
atravessando conceitos.
Auto reclusão sem porta de entrada.
Abrigos de mim, do exagero,
da mania de me mostrar por inteiro,
sem desvelo, deixando fluir
num voar constante.
Ainda muito me resta,
tudo que ainda há de restante,
o avesso d'um tempo,
em solo de instantes.

(Taciana Valença)

NEM TANTO ÁGUA MOLE




Às vezes a gente se sente ameaçada. Ameaçada por ser gente, ameaçada por querer agradar, procurar entender, ser gentil, atenciosa, amável.
É verdade, a amabilidade incomoda as pessoas, assim como seu sorriso espontâneo também. Difícil agradar os seres ditos humanos. Alguns são como bichos, desconfiados.
Já cheguei a colocar a amabilidade na porta e sair, como quem deixa comida a um animal. Mas é porque realmente sou assim.
As pessoas são tão desconfiadas que às vezes acham que você quer algo em troca, E até que descubram que não há nada que possa querer ou mesmo que tenham a dar vai um tempinho.
Mas acredito que estamos aqui também para isso, sermos um pouco água mole em pedra dura. Só que existem algumas pedras que querem ser pedras até o final dos tempos. Aí, não sendo santa, tiro o time de campo.
Anda difícil a relação humana. Os conceitos truncados, distorcidos, um ódio que não se sabem nem mesmo ao que. Acredito que realmente alguns fatores externos estejam contribuindo para esse tipo de insanidade, desse comportamento violento e impensado.
As radiações, wi-fi, celulares, enfim, toda sorte de perturbações externas. Ouço coisas que parecem de pessoas desconectadas, perturbadas realmente. Coisas tão absurdas, deduções tão esquisitas que são insanas.
Espero sinceramente estar errada e esta petrificação das pessoas seja impressão ou algo passageiro. Temo por nós, pelo caminho que a humanidade está trilhando e pela distorção nos conceitos fundamentais sobre a vida, o amor e a convivência.
Ainda assim continuarei água, molinha, molinha, deslizando entre as pedras que racham mas não se humanizam.
(Taciana Valença)

CANDURA


 

Janela aberta, coração menino,
o cheiro do Jasmim, um mimo,
se aconchegando à noitinha,
quando o bolo vai saindo do forno
e os aromas se misturam.

Há risos na conversa vizinha,
um quê de doçura
em banco de praça,
onde o mundo perpassa
em solo de candura.

Rudes almas atravessam rentes
com ar de ceticismo,
de rijos dedos
cavando seus abismos.

No aconchego um convite,
e que se preencha de calmaria
os vazios das horas
e as ruas sombrias.

(Taciana Valença)

## RESISTIR PARA SOBREVIVER ##



Respirar, apesar da força desafiadora
q’empurra ao afogamento, sem dó.
Resistir às pesadas forças da injustiça,
desumanas e sarcásticas.

Legítimo é viver,
protegendo-se do mal
num clamor pelo sobreviver,
digna e humanamente.

O mal se apresenta sob mil faces,
USA a ignorância e alienação
como comparsas
para destruir uma nação.

Demônios se juntam
numa corrente pesada e hostil
acendendo o pavil
d’uma injustiça em massa.

Manobras do mal e da brutalidade
num desrespeito sem nome
a destruir um jovem país
e toda uma sociedade.

Passam por cima das leis,
rasgam a constituição,
que fizeram esses inomináveis
com essa grande Nação?

Balas que ecoam risos,
massas de manobra
vazias e sem noção
aplaudem violência e agressão.

A democracia chora o descaso pelo povo,
a falta de moradia, dignidade, saúde e educação,
os direitos roubados
pela pior espécie de ladrão.

Resistir é a luta.
Política se faz nas urnas e
com argumentos e palavras
não com feras e balas.

(Taciana Valença)
Baseado no texto “É imperativo resistir”, de Thiago Burkhart.

quarta-feira, 14 de março de 2018

A VIDA DE TÊNIS





Os sonhos andavam em tropa (como dizia minha avó), saindo do colégio na Rua Dom Bosco para tomar sorvete na Fri Sabor da esquina. Sinceramente, o futuro não importava muito, o que importava era o sorvete de baunilha, chocolate e creme russo na banana split que substituía meu almoço para voltar para o colégio.
Trocava de roupa, ensaiava ginástica rítmica e, por não poder ficar muito tempo esperando, inventava de fazer atletismo. Sempre saía em cima da hora para o banho, chegando de cabelos molhados na aula onde havia começado o "profissionalizante" de administração.

Não sei porque cargas d'água eu achava que ia ser uma ótima administradora se na verdade piscina e quadras eram a minha vida.
Talvez influência do meu pai, já que nunca quis seguir odontologia, profissão que minha mãe deixou de exercer para cuidar dos filhos (isso influenciou?). Não me via debruçada sobre bocas abertas de hálitos duvidosos.
Enfim, era a juventude apoiada nos braços dos amigos, nas risadas, nas músicas dos anos 80, nas paqueras e paixonites, nos impulsos para a maturidade mesclados com meninices.
Ah! Se soubesse que passaria tão rápido, que aquela música cantada pelas cinco mais unidas amigas seria uma despedida de uma fase tão gostosa da vida. Ainda lembro da cena, as cinco sentadas na calçada do colégio no último dia de aula antes do vestibular. Puxamos então a música do Gonzaguinha: viver e não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar e cantar, a beleza de ser um eterno aprendiz...
E éramos tão jovens entrando na faculdade, engatando assim nas grandes responsabilidades: estágio, emprego e lá se foi metade desse cantar.
As gargalhadas foram ficando mais contidas, trocadas por cartões de ponto. E a gente foi indo...
A sorveteria continua lá, no mesmo lugar. Hoje dei uma volta ao passado, andei pelas ruas, lembrei das amigas, da nossa alegria constante achando que o mundo jamais teria fim.
Percebo agora que o fim nem está tão longe e que apesar de termos tanto a recordar, agora se faz mais do que urgente viver e não ter a vergonha de ser feliz.

(Taciana Valença)

sábado, 10 de março de 2018

ESVAINDO...



Não fechou as mãos,
nem mesmo segurou firme.
Frouxos dedos e sentimentos.
Portas e janelas abertas
a falar dos ventos...
O mesmo que trouxe
e carregou no redemoinho.
O mesmo que desfez ninhos, 
empurrou passarinho,
esculpiu rochas junto com a chuva,
derrubou cachos de uvas 
e polinizou as flores.
Foi o vento,
o vento e seu movimento
que me arrancou das tuas mãos.

(Taciana Valença)






















quinta-feira, 8 de março de 2018

RECADO


E pensar que ainda não temos muito a comemorar, apenas a seguir e continuar na luta.
Será que, um dia, após tantos debates, tanta "evolução", a mulher conseguirá acabar com o preconceito, a desvalorização, a violência, o abuso sexual, a jornada interminável de responsabilidades sem o devido reconhecimento?
Onde estão os filhos paridos? Por que carregar o feminino como sub se em um ventre foi gerado, desenvolvido e, pelo mais sagrado dos atos, parido? O que é que há que no lugar de um endeusamento há a violência, o preconceito, o descaso pelo trabalho excessivo e tantas outras formas de desvalorização? O que é que há nesse mundo que algumas coisas não mudam? Por que a luta dobrada, a necessidade de uma rebeldia para se impor uma voz que naturalmente poderia ser ouvida e respeitada? Por que as mãos em sinal de pare quando poderiam estar unidas usando forças que se completam? Até quando?
Março, apenas um mês para lembrar que muita coisa ainda continua igual, talvez algumas piores. Mas para lembrar, também, que não desistiremos de lutar contra os que nos desvalorizam e oprimem. Somos sensíveis, fortes, objetivas e sonhadoras. Aliamos a luta a um sonho, esteja ele onde estiver, seja qual for a estratosfera. Enquanto houver discriminação, feminicídios, desvalorização, abuso e tantas outras formas de preconceito, estaremos lutando e atentas. O nosso forte é sentir, mas com os pés bem fincados no chão. Confiamos desconfiando, porque assim nos fizeram através do tempo. Somos as ditas rainhas do lar, mas escravas de uma sociedade machista e hipócrita. Mas enquanto houver vida estaremos atentas, umas às outras, lutando por um espaço que nos caberia sem lutas, mas o mundo é isso, feito de guerras, lutas e guerrilhas. Mês de março, dia 8 de março. Apenas um mês e um dia de alerta geral, mas estamos em vigília uma vida inteira, e isso é exaustivo e seria desnecessário, caso o ser humano fosse realmente humano e desenvolvido espiritualmente. Mas fica aqui um recado:
A GENTE NÃO CANSA!
(Taciana Valença)

quinta-feira, 1 de março de 2018

ENTRE UVAS E TAÇAS





Entrar em águas turvas,
pisotear no lagar as uvas,
enquanto o mosto fermenta.

Pensar sabor em ponta de língua,
para que nada morra à míngua
no solo de todo querer.
Em maceração curta,
que o vinho se faça,
da cor, sabor, fermento, das cascas...
Servindo enfim aos prazeres das taças.
(Taciana Valença)

SIMPLES ASSIM


          Apressada e já com a chave na porta olhou o chinelo virado. Voltou e desvirou. Vez por outra batia uma crendice. Lembrou: se deixar o chinelo virado a mãe morre! Um gesto poderia salvar a grande mulher da vida dela. Voltou e desvirou. Olhou para as plantas e lembrou não ter regado. Já com a porta aberta novamente voltou. Regou todas elas. Resolveu até cantarolar, menosprezando a pressa que insistia em puxar pelos braços. Você não me dá ordem, pensou.
          Certas coisas com a idade vão virando toques e sem querer vão tomando teu tempo, dando as coordenadas como se não dominasse mais os próprios quereres. Obedecer aos toques ou à pressa? Uma puxava para dentro, a outra para fora. E entre as duas quem era ela enfim? Pra lá e pra cá sob o comando de tudo, exceto dela própria.
          Compromisso do lado de fora. Teria que ir! Teria? Queria? Batendo a porta, deixou-se cair no sofá. Olhou a garrafa de vinho ainda fechada. Tirou os sapatos, largou a bolsa ao lado e levantou já descalça. Colocou a bebida na geladeira. Foi só o tempo de tirar a roupa e com um bom banho deixar a cara lavada novamente.
          Abriu o vinho. Agora é entre nós! Dane-se o compromisso, tudo pode esperar, afinal. Era tão simples o que realmente queria naquela tarde: seguir a pulsação do seu coração, deixar-se largar em si mesma. Simples assim.

(Taciana Valença)


EU MORO NUM VERSO (TACIANA VALENÇA)